Além de indignar pesquisadores da área devido aos gastos excessivos com hotéis, viagens e a grande quantidade de pessoas envolvidas, o projeto do Ministério da Educação (MEC) com a Universidade Federal de Sergipe (UFS) no valor de R$ 12,2 milhões denunciado pela Gazeta do Povo no último domingo (20) também chama a atenção pelas remunerações prometidas à equipe principal, muitas delas em troca de apenas duas horas semanais de trabalho.
Ao todo, o contrato 017/2023-UFS para avaliação do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) apresenta 454 pessoas envolvidas no trabalho — sem contar colaboradores da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese) e do instituto de pesquisa que será contratado — e destina cerca de R$ 5,5 milhões para os salários dessas pessoas entre janeiro de 2023 e maio de 2025. No entanto, quase metade dessa quantia é para um grupo de 10 pessoas.
>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram
O maior ordenado é da coordenadora, que é doutora em Biotecnologia e receberá o total de R$ 430 mil pelas duas horas semanais que dedicará ao trabalho até maio de 2025. “Se pegarmos esse valor e dividirmos pelas 125 semanas de duração do projeto, a coordenadora receberá R$ 1.723,35 para cada hora trabalhada”, calcula o professor Alan Almeida Santos, do departamento de matemática da UFS.
Segundo ele, um educador com dedicação exclusiva à universidade — 40 horas semanais — que ganhasse esse valor para cada hora trabalhada receberia ao final do mês um montante de quase R$ 300 mil, valor que representa 20 vezes mais do que a coordenadora recebe de ordenado na universidade. De acordo com dados de junho de 2023 disponíveis no Portal de Transparência do Governo Federal, a remuneração mensal bruta da professora citada no contrato é de R$ 14.558,74 com dedicação exclusiva.
Depois dela, o segundo maior salário é de um técnico em assessoria que não tem seu nome revelado no contrato e nem as funções que desempenhará. Para ele, a remuneração bruta será de R$ 375 mil pagos pela Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese), entidade contratada pela UFS como administradora do valor total do projeto.
Já os próximos ordenados poderosos da lista são destinados a dois técnicos em assessoria e a três técnicos de apoio que receberão R$ 225 mil e R$ 156 mil, respectivamente. Esses valores serão pagos pela Fapese a cada profissional, e os nomes, detalhamento de funções ou a carga horária desses destinatários também não são divulgados no documento.
Remuneração sete vezes maior que a média por hora de trabalho
Na sequência dos ordenados mais altos estão três pesquisadores da área de Ciências Biológicas, que receberão R$ 150 mil cada um por duas horas semanais. “Ou seja, vão trabalhar 250 horas no valor de R$ 600 cada uma”, explica o matemático, que compara esse valor por hora ao ordenado médio recebido por um professor universitário.
“Um educador que trabalha 40 horas semanais e recebe em torno de R$ 15 mil tem sua hora de trabalho custando R$ 90. Então, o valor recebido pelo mesmo profissional nesse projeto é sete vezes maior”, aponta Santos.
Além disso, o contrato ainda destina salários de R$ 96 mil para outros seis técnicos de apoio contratados pela Fapese, e garante salários de até R$ 90 mil para assessores de comunicação, que também recebem o montante por duas horas semanais. “Ou seja, R$ 360 por hora”, calcula o doutor em matemática.
Esse contrato não passou pela CGU
Em nota enviada à Gazeta do Povo a respeito do caso, a UFS informou que as cláusulas e detalhamento das despesas do Contrato 017/2023-UFS foram baseadas em modelos de contratos anteriores que “já foram objeto de análise sem objeções pela Controladoria-Geral da União (CGU)”.
Ou seja, o documento citado pela reportagem da Gazeta do Povo não foi alvo de análise pela CGU, como divulgado em reportagem na última quinta-feira (24). De acordo com o órgão de controle interno do Governo Federal, “em relação ao Contrato 017/2023-UFS, não há trabalho realizado ou em andamento”, e denúncias encaminhadas por qualquer cidadão ao site Fala.BR ainda podem ser analisadas ao longo do ano.
Afinal, sobre o que é esse projeto?
De acordo com o contrato entre UFS e Fapese, o projeto com recursos do Ministério da Educação aborda o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), que disponibiliza obras didáticas e materiais de apoio para escolas públicas de educação básica em todo o Brasil. No entanto, o orçamento de R$ 12,2 milhões não cita preparação de livros ou envio de materiais para escolas, já que o orçamento destina apenas R$ 145 mil reais para impressões de material e gastos com edição.
O que será feito, segundo o contrato, é apoiar a execução do “Projeto Estruturante PNLD”, que visa “avaliação de desempenho, elaboração de instrumentos de gestão e assessoramento” para promover um diagnóstico do projeto atualmente. “Inclusive, sugerindo mudanças de rotas ou retomadas de caminhos anteriores no que tange à etapa de avaliação pedagógica”, cita o documento.
Para uma especialista do programa PNLD entrevistada pela Gazeta do Povo que preferiu não se identificar, isso já ocorre naturalmente dentro do programa por meio de reuniões técnicas e do próprio MEC, “que faz essa retomada de rota quando a coordenação pedagógica percebe que algo não está acontecendo de forma correta”, explica.
Além disso, o contrato prevê “uma série de estudos” que direcionem a elaboração de parâmetros para avaliação pedagógica e para “impactar toda a cadeia de produção de textos balizadores” como editais, orientações para avaliadores, fichas avaliativas e recursos. Também estão previstas avaliação de materiais, como obras literárias, e a realização de eventos remotos e presenciais.
Segundo a especialista em PNLD citada anteriormente, já existe uma comissão técnica “bastante robusta” no programa e com “multivocalidade de pensamento, um instrumento de enriquecimento que garante a todos oportunidade de trabalhar de forma tolerante, com ideias diferentes”. Por isso, ela alerta que, ao romper essa estrutura, “pode ser estabelecida uma única voz e reverberando apenas uma ideia”, pontua a educadora, preocupada com a implantação ideológica desse discurso único. “Acho, inclusive, que isso é similar ao que a Coreia do Norte faz e ao que Adolf Hitler já fez”.
E o que diz a UFS?
Em seu site, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) se posicionou a respeito da reportagem publicada pela Gazeta do Povo no último domingo (20), negando “implementação de agenda de esquerda” e afirmando que “não existe qualquer investigação ou indícios de irregularidades sobre o caso”.
A universidade cita que o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) tem quase 85 anos, é reconhecido em todo o mundo por sua solidez e já passou por processos de avaliação anteriores com outras universidades públicas e “parâmetros semelhantes”.
“As despesas previstas levam em consideração critérios técnicos, como o padrão do valor de diárias estabelecido pelo CNPq e pela Fapese, e o valores de mercado das passagens, quando da apresentação do projeto em 2022”, e ressalta que “até o momento o projeto não dispensou recursos com passagens e hospedagens internacionais para os pesquisadores envolvidos, restringindo-se a deslocamento nacional para reuniões junto ao MEC, em Brasília”.
Em relação à “legitimidade da atuação dos docentes da instituição em torno do projeto”, a nota também informa que a equipe do Projeto Estruturante PNLD está vinculada a diversas áreas, “como física, química, matemática, pedagogia, biologia, comunicação, entre outras” e que envolve “discentes e docentes bolsistas de diversas áreas da licenciatura, além de participantes externos à UFS”.