Confirmada a vitória de Javier Milei na Argentina, ilustrações da Mafalda chorando ou sendo consolada pela líder da Turma da Mônica dominaram as redes sociais da mesma esquerda brasileira que, em 2018, pedia que ninguém soltasse a mão de ninguém. Jair Bolsonaro havia atropelado o petista Fernando Haddad nas urnas com números gêmeos aos de Milei contra Sergio Massa agora: 55% a 44%. O ódio venceu o amor, lamentavam os derrotados.
A própria Janja, primeira-dama do Brasil e prócer desse círculo progressista, foi à internet na manhã de domingo (19) —ou seja, antes da derrota de Massa— compartilhar o conforto que Mônica oferece à amiguinha criada pelo cartunista Quino: “Mejorará”. Contrariando qualquer cartilha diplomática para quem, bem ou mal, está numa posição simbólica como a dela, a socióloga adicionou um nada sutil trocadilho: “Que Massa esse abraço!!!”.
Essa ala da esquerda nacional, em geral ligada a quadros intelectuais e culturais, parecia até ontem confiante em que a Argentina de 2023 imitaria o Brasil de 2022. Os hermanos, contudo, ainda vivem seu 2018 particular, assim como naquele ano os brasileiros entravam na trend galvanizada por Donald Trump nos EUA de 2016.
Assim como Janja, Nicole Briones, responsável pelas redes sociais de Lula (PT) no passado, usou o X (antigo Twitter) para dar seus pitacos sobre a eleição argentina. Sua visão, no entanto, marreta o muro das lamentações instaurado após o resultado do pleito ao lado.
“Zero surpresas com Milei. A esquerda mundial precisa se reconciliar com o povo e buscar entender seus anseios reais. Enquanto ficar nessa baboseira de amor e blá blá tamo lascado. O povo quer ORDEM e dinheiro no bolso. Aqui ganhou o Lula porque era ele e mesmo assim quase perdeu.”
Sim, Lula, um colosso eleitoral que duelava com um Bolsonaro fragilizado em muitas frentes, não perdeu por muito pouco no ano passado. O que dizer de Massa, ministro da Economia num país de inflação galopante, ungido candidato pelo partido governista num momento em que sete em cada dez argentinos diziam que a vida piorou no último ano?
Não que ele não tivesse chance. Surpreendeu e largou na dianteira no primeiro turno. Apostava alto na máxima “ruim com ele, pior sem ele”. Seu rival, afinal, levanta ceticismo mesmo entre pares à direita com sua promessa de dolarizar a economia e é dono de uma personalidade excêntrica, se formos usar um eufemismo.
Milei se diz pai de Conan, Murray, Milton, Robert e Lucas, os cinco cachorros que clonou a partir de um original de quatro patas defunto, falou mal de Francisco, o papa conterrâneo, e, embora se diga contra o aborto, já relativizou a comercialização de filhos: “Se eu tivesse um, não o venderia. A resposta depende de quais termos você está pensando, talvez daqui a 200 anos isso possa ser debatido”.
Massa, por sua vez, superou um nome bem mais à esquerda nas prévias e era a melhor carta na manga peronista para esta eleição. Não deu.
Milei foi bem-sucedido numa estratégia que também vingou para o empresário Trump e o deputado do baixo clero Bolsonaro: lustrou-se como opção antissistema quando muitos argentinos, sobretudo os jovens, estavam desiludidos com uma casta política que, à direita e à esquerda, os deixou na mão eleição após eleição.
Postar Mafaldas chorosas pode dar senso de unidade a uma decepção coletiva nesta elite progressista, com a direita radical avançando uma casa no continente quando se esperava que essa onda refluísse. Mas também esbugalham uma certa desconexão do grupo com os “anseios reais” do povo, como pontua Nicole Briones, hoje à frente da comunicação digital na EBC.
Não vale pedir que ninguém solte a mão de ninguém uma hora e, na seguinte, ser o primeiro a largar de mão a tiazinha evangélica que vende bolo na frente do metrô porque ela votou no dito candidato errado. Não é esnobando quem não fala “todes” que se fala com todos, mas uma parte da esquerda não está pronta para ter essa conversa.