Na semana seguinte aos incêndios devastadores que varreram Maui, Hōkūlani Holt caminhou até o centro de um gramado logo após as montanhas íngremes da ilha e a quase 20 km de Lahaina, cidade mais afetada pelo fogo.
Como kumu hula, ou professor de hula, Holt reuniu cerca de 50 ouvintes em um semicírculo e os exortou a “elevar suas vozes”. Cada um segurava um copo d’água —uma conexão entre o corpo, a alma e a ʻāina, conceito expansivo dos havaianos sobre a terra. Vários homens e mulheres sopraram tubos de bambu ocos chamados pū ʻohe, produzindo um som profundo semelhante a uma trombeta. Em seguida, liderado pela voz de Holt, o grupo começou a cantar.
Após o incêndio mais mortal do país em mais de um século —pelo menos 115 mortes foram confirmadas, e centenas de pessoas ainda estão desaparecidas—, as providências práticas começaram a ser tomadas: distribuição de alimentos, limpeza de escombros, visita do presidente.
Mas cerimônias tradicionais havaianas, como a realizada por Holt, estão abordando outra necessidade que muitos moradores consideram crucial: a cura espiritual.
Embora mais da metade das pessoas no estado se descrevam como cristãs e haja uma forte presença budista nas ilhas, as práticas espirituais tradicionais foram revividas e avançaram em todo o estado nas últimas décadas.
Em uma pesquisa realizada no ano passado, mais de 40% dos havaianos nativos disseram que interagiam com o mar ou a ʻāina —uma entidade descrita como um parente que é respeitado e cuidado e que, por sua vez, cuida das pessoas— por motivos religiosos ou espirituais. Entre os havaianos não nativos, o número foi de 31%.
“Agora as pessoas automaticamente esperam que o kumu hula faça cerimônias para abordar qualquer tipo de necessidade”, disse Cody Pueo Pata, um kumu hula e músico criado em Maui.
Dois dias após o incêndio, ele estava entre o pequeno grupo que fazia planos para as reuniões lideradas por Holt a convite do centro de saúde comunitário sem fins lucrativos que sediava os eventos. As cerimônias, que aconteceram ao meio-dia ao longo de 10 dias, começaram a atrair algumas dezenas de pessoas e cresceram para até 100 presencialmente e mais de 80 mil que assistiam por uma transmissão ao vivo nas redes sociais. Oprah Winfrey, que tem uma casa na ilha, compareceu discretamente no último dia.
O trabalho do grupo incluía uma seleção de orações para curar a terra e as pessoas da ilha. Isso exigia precisão, pois eles consideravam quais ancestrais abordar e pelo que pedir.
“O que não queríamos era chamar muita chuva”, disse Keali’i Reichel, um músico de Lahaina. Um temporal poderia causar enchentes e lavar cinzas e detritos para o oceano. Em vez disso, ele disse: “tentamos incentivar a umidade apenas o suficiente para criar crescimento regenerativo”.
Ele comparou a prática do canto à ação de puxar uma flecha de um arco, pronta para ser disparada. Os praticantes devem estar cientes desse poder e saber para onde direcioná-lo, disse.
A oração, em português, diz:
Ó Grande Lono que vive na Água —
Incentive o crescimento, mova-se, anime a vida;
Aqui está a água, água da vida, prospere!
Conceda-nos nuvens, nuvens das quais a vida vem, prospere!
Além de ser um dos artistas mais proeminentes das ilhas, conhecido por alguns dos álbuns de música havaiana mais vendidos na década de 1990, Reichel também se tornou um embaixador da cultura havaiana dentro e fora das ilhas. Ele fundou uma escola de hula em 1980 e é um kumu hula há muito tempo, papel que vai muito além da coreografia e inclui responsabilidades como transmitir conhecimento de linhagens espirituais específicas. Mais de um quarto dos residentes do estado se identificam pelo menos como parcialmente nativos do Havaí ou das ilhas do Pacífico, de acordo com o censo mais recente.
Revitalizar Lahaina, disse Reichel, “vai exigir planejamento, muito canto, muita cerimônia”.
Lahaina em si é um símbolo complexo da forma como a cultura havaiana e o cristianismo estão entrelaçados nas ilhas, nas quais muitos moradores praticam uma mistura de crenças. Foi onde os missionários cristãos estabeleceram a primeira missão de Maui, em 1823, a convite da rainha Keōpūolani logo após o desmantelamento de partes-chave do sistema religioso tradicional das ilhas sob o rei Kamehameha II.
Em 1873, uma grande figueira foi plantada na Front Street para comemorar o 50º aniversário do cristianismo na ilha. O local se tornou um popular ponto de encontro no centro da cidade, mas a árvore foi gravemente danificada pelo incêndio, e sua sobrevivência é incerta.
Muitos havaianos nativos, porém, veem a influência cristã como profundamente prejudicial. A dança hula foi proibida em locais públicos por décadas no século 19. Templos foram destruídos e o uso da língua havaiana murchou.
“Nossa religião tem sido atacada por séculos”, disse Marie Alohalani Brown, professora de religião havaiana na Universidade do Havaí em Mānoa e nativa havaiana. “Fomos chamados de pagãos, ignorantes, ingênuos”. No entanto, esse grupo nunca deixou de praticar sua religião tradicional, uma fé que inclui múltiplos deuses e identifica espíritos em entidades como o céu e o mar.
Suas raízes remontam aos povos das ilhas do Pacífico que provavelmente chegaram ao Havaí após 1100 d.C. Na década de 1970, um movimento conhecido como “Renascimento Havaiano” reviveu muitas práticas tradicionais que foram proibidas ou desencorajadas nos séculos 19 e 20, um padrão também encontrado em Guam e em outras ilhas do Pacífico colonizadas.
Aqueles que participaram da cerimônia conduzida por Holt receberam de bom grado a oportunidade de se reunir e rezar juntos, em vez de em casa.
Passar tudo isso para a próxima geração também parecia ser uma prioridade. Mães seguravam bebês que permaneciam quietos durante o canto. Crianças pequenas e adolescentes prestavam atenção em silêncio.
Ceri Zablan, que tem 16 anos, disse que, para muitos jovens havaianos, a conexão entre cultura, fé e história se tornou mais poderosa nos últimos anos. Ela disse que foi batizada católica, mas gradualmente se afastou do cristianismo.
“Há pessoas que meio que escolhem os dois”, disse Zablan. “Para mim, isso é mais importante.”