Pode parecer estranho: o governo português, com maioria absoluta no Parlamento, tomou posse há pouco mais de um ano e meio. Mas Portugal terá novas eleições gerais em 10 de março de 2024. Será que os meus compatriotas enlouqueceram?
Não creio. O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já tinha avisado: a vitória em 2022 não foi apenas do Partido Socialista. Foi uma vitória altamente personalizada na figura de António Costa. Se ele deixasse o governo, haveria eleições.
Fato: Marcelo disse o que disse para frear as tentações de Costa em aceitar um cargo de relevo na União Europeia. Não seria a primeira vez: em 2004, o então premiê José Manuel Durão Barroso fez isso mesmo ao rumar para Bruxelas como presidente da Comissão Europeia.
Mas o que era válido para altos voos, também serve para dolorosas aterrissagens.
Essa aterrissagem aconteceu agora, com a renúncia do premiê ao cargo. No discurso de despedida, Costa falou das suspeitas que o Ministério Público lançou sobre sua pessoa. Declarou-se de consciência tranquila, mas considerou-as incompatíveis com o exercício da função.
O filme é mais complicado: mesmo que Costa não estivesse sob os holofotes da Justiça, a verdade é que as detenções do chefe de gabinete, do consultor pessoal e as investigações em curso de ministros por alegados crimes de corrupção, tráfico de influências e prevaricação em negócios ligados à exploração de lítio e hidrogênio bastariam para tornar a sua posição insustentável.
Além disso, a maioria absoluta começou a sangrar demasiado cedo com secretários de Estado que foram se demitindo por problemas judiciais. O premiê, vendo a sua casa ardendo, repetia incansavelmente o mantra: “à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política”. Uma distinção que foi bastante útil para blindar o Partido Socialista depois da prisão preventiva de José Sócrates, também ele premiê socialista, por suspeitas de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção.
Mas chega uma hora em que a distinção é piada de mau gosto. E agora?
Olhando para as pesquisas antes da crise política, o Partido Socialista e o principal partido da oposição, o Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, apareciam empatados, o que não deixava de ser um mistério: os escândalos no governo e a degradação inimaginável em áreas-chave como a saúde, a educação, a habitação ou os transportes, não pareciam punir o governo de António Costa. Os portugueses pareciam resignados a um governo mediano, não encontrando no PSD uma alternativa à altura.
É preciso esperar agora para medir o tamanho do estrago entre os socialistas, que terão de escolher uma nova liderança para o pleito. Uma coisa parece certa: o partido Chega, de ultradireita, parece ser o grande beneficiário da crise e pode se tornar incontornável para a formação de um eventual governo de direita.
Vem nos livros: quando os partidos tradicionais não estão à altura dos desafios políticos da sociedade, os extremos agradecem.