ONGs e associações que lideram a Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024 elaboraram um documento de referência que sugere a inclusão da educação ambiental e a “valorização da diversidade, equidade e justiça social” como critérios para avaliar a qualidade das escolas brasileiras.
O documento, publicado no último dia 18 pelo Fórum Nacional de Educação (veja aqui quem são os membros desse fórum), propõe que os instrumentos de avaliação da qualidade do ensino no Brasil não se limitem somente a medir o desempenho dos alunos em disciplinas tradicionais como português e matemática, mas trabalhem com o conceito de “qualidade social da educação”. “Não se pode apreender a qualidade da educação somente por meio da avaliação do desempenho do(a) estudante”, afirma o texto.
A “qualidade social da educação”, segundo as organizações que assinam o documento de referência do Conae, estaria “intimamente vinculada” à concepção de “formação humana emancipatória, crítica e para a cidadania, considerando a educação em direitos humanos (EDH) e em educação ambiental, bem com o respeito e a valorização da diversidade, equidade e justiça social”.
A proposta é mais um passo na contramão do que especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo nos últimos anos têm definido como uma das principais prioridades para melhorar as escolas no Brasil: adotar critérios objetivos para medir a qualidade do ensino nas disciplinas básicas.
“O documento é todo baseado em narrativas. Tudo é muito subjetivo. Em nenhum momento eles falam efetivamente de uma melhora qualitativa do ensino. Colocam, por exemplo, a questão de direitos humanos, mas não conceituam direito humano. Todo mundo compra a ideia de direito humano, mas o que eles querem dizer, na verdade, são outras coisas”, afirma a consultora educacional Andréia Medrado Serrano.
Para ela, o documento do Conae “não tem metas concretas de melhoria na educação”, mas sim “metas de modificação comportamental dentro da sala de aula”. “O perigo é ampliar dentro do sistema de ensino o foco na construção de militância política, e dar um foco cada vez menor no desenvolvimento cognitivo”, observa.
Outro problema, na visão dela, é a ênfase na formação do senso crítico e no caráter “emancipatório” da educação, em um contexto em que a formação intelectual dos alunos é precária e em uma faixa etária na qual a autonomia das crianças ainda é relativa.
“Em uma das proposições, a ideia é assegurar a educação emancipatória desde os primeiros anos, nos anos iniciais da escola. A criança vai para a escola obrigatoriamente no Brasil com 4 anos de idade. Uma criança com 4 anos não está nem na idade da razão. Não consegue fazer a distinção entre o que é correto ou não sem a ajuda de um adulto, para que ela entenda como agir e como se portar. Toda essa utopia de autonomia da criança é, na verdade, uma subversão, um disfarce para criar uma separação entre a criança e uma autoridade. Quando a gente lê todo o documento, fica muito claro que a autoridade da qual a criança deve se emancipar é a própria família”, critica. “A criança é colocada numa posição de autonomia, mas ela não tem condições psicológicas, intelectuais e inclusive físicas de autonomia neste momento. Ela é obrigada a ouvir tudo o que a escola diz. Se é algo diferente do que a família diz, ela vai colocar em xeque o que a família diz”, complementa.
Parte do caminho para uma emancipação autêntica, segundo Andréia, seria justamente que as escolas focassem em melhorar a aprendizagem das disciplinas básicas. “Dentro de uma aula de português, trabalham com textos que supostamente criam senso crítico, mas trabalham muito pouco com o desenvolvimento da leitura e da escrita. Na verdade, não existe uma leitura crítica se antes o trabalho de alfabetização da criança não for bem feito”, diz.
A ênfase em medir o nível das escolas pela “qualidade social da educação” pode agravar a ineficácia dos exames nacionais como parâmetro para impulsionar uma melhoria na educação brasileira. As métricas vagas e pouco rigorosas para aferir o nível de aprendizagem dos alunos – especialmente nas disciplinas básicas, como português e matemática – têm sido apontadas por especialistas consultados pela Gazeta do Povo nos últimos anos como um dos principais motivos da estagnação da qualidade da educação nacional.
Embora instrumentos do governo como o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) apontem melhoria da qualidade das escolas, exames internacionais revelam que, em comparação com outros países, a qualidade da educação no Brasil é precária. O descompasso entre os resultados dos exames internos e externos escancara que há um problema com o tipo de avaliação feito no Brasil.
Conae tem influência não só no campo legislativo, mas também na base das escolas
O documento de referência do Conae tende a ser determinante na elaboração de um anteprojeto do Plano Nacional de Educação (PNE) a ser enviado pelo Executivo ao Congresso. O PNE do decênio de 2024 a 2034 será votado pelo Congresso no ano que vem. A Conae propõe diretrizes e metas que, embora não sejam obrigatoriamente acatadas no anteprojeto do PNE, tendem a servir como base para esse texto.
Ilona Becskeházy, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) e doutora em política educacional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), considera a publicação recente da Conae um “documento de militância de extrema-esquerda”.
“Praticamente não tem nenhuma dissidência ideológica na Conae”, diz. “A militância de extrema-esquerda está animada com o Lula no poder, ganhou mais protagonismo, mais poder. É óbvio que os primeiros documentos sejam pavorosos”, acrescenta.
Para ela, é de grande relevância que a oposição fique atenta ao discutir o tema no Congresso. “Há muitos deputados mal-intencionados, e a gente já sabe como eles votam, mas, mesmo os bem-intencionados, como não sabem os detalhes da educação, podem ser ludibriados.”
Andréia Medrado Serrano afirma que a discussão legislativa é importante, mas também é preciso ficar de olho na articulação feita nas bases, já que o fórum nacional se desdobra em vários fóruns estaduais e municipais. Independentemente do texto final que for aprovado pelo Congresso, a influência exercida pelo Fórum Nacional de Educação durante a Conae tende a ser forte também por meio do trabalho de base.
“Eles controlam politicamente a energia docente dos locais. Ali, os professores e os sindicatos que estão mais próximos do fórum são os responsáveis por fazerem valer o que é decidido na Conae”, explica.
Para ela, a conscientização dos parlamentares da oposição é importante, mas o “problema não é só a lei”. “O problema é que, nas unidades escolares, nos fóruns municipais e estaduais, existe um movimento de ir fazendo uma espécie de lobby com os docentes locais. O próprio documento propõe fazer formações continuadas com os docentes sobre alguns tipos de conceitos pedagógicos”, alerta.