Do clima de diálogo em 1993 à parada em um rígido posto de controle israelense em 2010, o presidente Lula (PT) pôde testemunhar, entre as suas duas idas à Palestina, a deterioração das condições para uma paz com Israel.
Por outro lado, recebeu nas duas ocasiões sinalizações positivas dos palestinos a uma aspiração duradoura do petista: colocar o Brasil como mediador do diálogo entre as duas partes.
O caminho para atingir essa meta teve desde gestos públicos de Lula, como o reconhecimento do Estado Palestino, a conversas reservadas e até a uma sugestão de que palestinos e israelenses jogassem futebol em um mesmo time contra a seleção brasileira.
Assim como a paz na região, o amistoso não chegou a acontecer, apesar do “soft power” de Pelé —o jogador brasileiro, amado no Oriente Médio, dá nome ao estádio palestino nas imediações de Belém.
A primeira ida de Lula à Palestina ocorreu 30 anos atrás, ocasião na qual o petista também foi para Israel. Na época, ele era dirigente partidário e não ocupava cargos públicos —estava se preparando para a disputa eleitoral de 1994.
Para viabilizar a viagem, o empresário Oded Grajew conta que procurou o consulado israelense em São Paulo e acabou obtendo um convite para a ida de uma comitiva ao país. Além de Lula, o grupo contava com Grajew, sua esposa, Mara, Marisa Letícia e o agrônomo José Graziano.
Em Israel, foram planejados encontros com políticos, uma ida a um kibutz, à central sindical israelense Histradut e ao Museu do Holocausto, entre outros compromissos.
Por meio de contatos do PT, lembra Grajew, a comitiva também fez por conta própria visitas à área palestina, incluindo encontros com políticos na Orient House, sede da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no bairro muçulmano de Jerusalém.
Grajew relata que Lula achou importante contar sobre essa incursão ao lado palestino ao presidente israelense, Shimon Peres, já que a viagem era um convite israelense. O petista ficou aliviado ao ouvir de seu interlocutor que fizera muito bem em falar com as duas partes.
Também do lado palestino a manifestação era favorável ao diálogo. Naquele momento, a comitiva petista não sabia, mas já estavam em curso as negociações para os Acordos de Oslo.
Em 2010, quando Lula voltou à região como presidente da República, a situação já era muito diferente.
Os Acordos de Oslo haviam falhado, a Orient House tinha sido fechada por Israel, Tel Aviv acabava de anunciar a construção de mais moradias em Jerusalém Oriental, e os palestinos se dividiam entre a ANP (Autoridade Nacional Palestina), que administrava a Cisjordânia, e o Hamas, que tomou a Faixa de Gaza.
O símbolo maior do acirramento das tensões, porém, talvez fosse outro: os postos de controle israelenses na fronteira com o território palestino.
Integrante da comitiva de Lula, o jornalista Franklin Martins, então ministro da Secretaria de Comunicação Social, afirma que a visão era impactante.
Para ir ao lado palestino, lembra Franklin, eles foram levados por um veículo israelense a um checkpoint, a área de controle na fronteira, que basicamente era uma faixa estreita delimitada por dois muros altos de ferro. Ali, um veículo palestino os levou para a visita à Cisjordânia.
Na volta, a comitiva parou de novo no checkpoint, e o veículo israelense demorou alguns minutos para chegar, lembra Franklin.
Franklin conta que, por trás de uma grade que lhe pareceu uma jaula, havia muitas mulheres e crianças palestinas. Ao procurar entender quem eram, uma delas lhe explicou: eram mães que levavam seus filhos para estudar.
A escola ficava em uma área palestina, mas, como o caminho passava por territórios ocupados por Israel, elas e as crianças tinham que esperar até que um representante do controle de fronteira as autorizasse a passar. Ali ficou clara, diz Franklin, a violência cotidiana a que está submetida a população civil palestina.
O impacto da passagem por um checkpoint também é narrado por Celso Amorim, assessor de Lula para assuntos internacionais e à época chanceler, em seu livro “Teerã, Ramalá e Doha” (ed. Saraiva, 2015).
“Belém, que está sob a administração da ANP, é praticamente contígua a Jerusalém, mas para chegarmos lá tivemos de atravessar o checkpoint Raquel, que tem as mesmas características deprimentes de outros cruzamentos entre Israel e a Cisjordânia”, narra.
“Não deixou de ser educativo para a comitiva brasileira, e talvez para o presidente, ver com os próprios olhos, o muro que separa Jerusalém dos palestinos.”
Em suas falas na Cisjordânia, Lula reafirmou a posição brasileira da defesa da coexistência pacífica dos dois Estados e condenou a extensão da ocupação israelense. Também inaugurou uma rua com o nome Brasil.
A relação amistosa com os palestinos, sempre se equilibrando com a preocupação de não melindrar os israelenses, tinha antecedentes narrados no livro de Amorim.
Em 2008, por exemplo, quando Israel bombardeou Gaza por um suposto desrespeito de uma trégua pelo Hamas, o braço direito de Lula na política externa afirma que o presidente demonstrava indignação com o que via como passividade da comunidade internacional diante da “carnificina” de civis palestinos
O então chanceler também destaca a convicção de Lula de que todos deveriam participar dos diálogos para a paz na região, e que isso incluía conversar com o Hamas.
Amorim lembra, inclusive, frase do presidente ao governo israelense que reforçaria a crença do petista na possibilidade de construção de consensos: “Vamos colocar os cinco melhores chanceleres do mundo numa sala e pedir que produzam um plano que os dois lados possam aceitar”, teria dito Lula.
Foi nesse espírito também que Lula recebeu Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, em jantar em Salvador na casa do então governador Jaques Wagner, judeu, e dias depois sugeriu publicamente a ideia do jogo com um time misto de israelenses e palestinos.
Nem Amorim demonstrou otimismo com a possibilidade de a partida acontecer.
“Com toda a admiração que tinha —e continuo a ter— pela intuição política do presidente Lula, vez ou outra achava que sua convicção sobre a capacidade dos líderes de influenciar a evolução dos fatos ia além do razoável”, escreve, citando a ideia do jogo como exemplo.
Reconhecimento
A partida não aconteceu, mas os palestinos tiveram um importante sinal no fim do segundo mandato de Lula: o reconhecimento formal pelo governo brasileiro do Estado palestino nas fronteiras de 1967.
Amorim resgata no livro o comentário que escreveu em seu registro pessoal da ocasião: “É melhor fazer [o reconhecimento] agora do que deixar o problema [para a presidente eleita]”.
A preocupação com o gesto se justificava diante da proximidade que Lula havia construído com a comunidade judaica, por exemplo com cerimonias em memória das vítimas do Holocausto, e da repercussão interna negativa de iniciativas de aproximação com governos como o do Irã, apontado como financiador do Hamas.
Presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil, Ualid Rabah reforça a importância do reconhecimento do Estado palestino, que levou uma série de outros países sul-americanos a fazer o mesmo.
Ele lembra que a OLP estabeleceu sua representação no Brasil em 1975, em meio ao regime militar, para chamar de equivocada a ideia de que a questão palestina no Brasil está ligada a uma divisão entre direita e esquerda.
“O presidente Lula tem uma relação de simpatia com a resolução de problemas coloniais no mundo, e os palestinos são o último povo submetido a colonialismo”, diz.