Às vezes é cansativo ser historiador neste século 21.
Um exemplo: quando Donald Trump faz publicações assumindo as suas ambições de controle territorial sobre o Canal do Panamá ou sobre a Groenlândia, analistas de relações internacionais e de ciência política coçam a cabeça e perguntam-se se é mesmo “para levar a sério”.
Enquanto hesitam, explicam-nos a base do seu ceticismo para com a ideia de que os autoritários do nosso tempo queiram, a exemplo dos autoritários de todos os séculos anteriores, mudar fronteiras e anexar territórios estrangeiros pela força militar ou pela pressão política: “Já não estamos no século 19!”.
Claro que não estamos no século 19. Mas no próprio século 19 a Europa viveu várias gerações de estabilidade após o Congresso de Viena de 1815, de forma que os analistas e comentadores da época também achavam que o seu tempo fosse essencialmente diferente dos anteriores.
Mesmo a primeira Guerra da Crimeia (1853-56) foi vista como um interlúdio num território longínquo (na verdade foi uma verdadeira guerra global, do Mediterrâneo ao Extremo Oriente, e embora breve, prelúdio de grandes conflitos futuros).
Logo a seguir, o século 20 também não era (como o nosso!) o século 19, e isso não impediu ninguém de avançar para duas guerras mundiais. Embora, é claro, também então houvesse analistas como os de hoje.
O que ficou mais conhecido foi Normal Angell, autor do muito influente livro “A Grande Ilusão”, que afirmava que a interdependência econômica entre nações desenvolvidas era tão grande que tornaria a guerra entre elas inconcebível. O livro foi publicado em 1909 —cinco anos antes de ser refutado pela Grande Guerra de 1914-18.
Portanto, minha gente, a resposta é sim. Claro que as ambições territoriais de Trump sobre a Groenlândia (um território autônomo sob tutela da Dinamarca) e o Canal do Panamá (parte integral das fronteiras e da soberania do Panamá) são para levar a sério. Em qualquer época histórica, quando o homem mais poderoso do país mais poderoso do mundo diz que é uma “absoluta necessidade” controlar território de outro país, é sempre para levar a sério — e não há nenhuma razão para acreditar que o nosso século seja exceção.
Da mesma forma, era para ter levado a sério quando, em julho de 2021, Vladimir Putin publicou um ensaio “sobre a unidade histórica entre os russos e os ucranianos” que, fundamentalmente, expunha as razões pelas quais o seu autor entendia que os ucranianos não existiam enquanto povo e a Ucrânia só deveria existir enquanto Estado se fosse tutelada pela Rússia. Menos de oito meses depois, Putin ordenou a invasão em larga escala da Ucrânia e, até à véspera, ainda havia gente a se perguntar se era para “levar a sério”.
Claro que era. Tal como Xi Jinping sobre Taiwan, Erdogan sobre a Siría, e até Orbán sobre a Transcarpátia. Os nossos tiranos não são diferentes dos tiranos do passado. Nós é que somos mais ingênuos do que já fomos. Parem de chamar Cassandra aos historiadores, ou eles vos responderão que o problema de Cassandra era acertar em todas as previsões —e ninguém acreditar nela.
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