Qualquer crítico cultural pode reclamar da falta de criatividade observada na cultura pop dos Estados Unidos hoje e da “fome por um certo tipo de arte” em meio a tanta falta de originalidade institucionalizada.
Mas é um pouco mais difícil dar a escritores ou cineastas ordens específicas. De que tipo de arte estamos sentindo falta exatamente? O que esse artistas deveriam almejar?
Seja como for, vamos tentar fazer uma reflexão de final de ano sobre o assunto, inspirada por discursos recentes nas redes sociais, minhas compras de Natal e interesses pessoais e o sucesso de bilheteira de “Wicked“.
Se eu fosse distribuir tarefas aos possíveis autores de nossa cultura estagnada, sugeriria novos experimentos no gênero fantástico; mais do que isso, uma busca pela “Grande História da Fantasia Americana”.
Não me refiro apenas a um grande romance de fantasia escrito por um americano. Desde o gênio originário de J.R.R. Tolkien até o revisionismo sombrio, entre aspas, dos nossos dias, a fantasia criada e consumida no mundo de língua inglesa está fortemente associada ao passado do Norte da Europa, mesmo quando é escrita por pessoas do Novo Mundo, como George R.R. Martin (Isso inclui minha própria incursão na escrita de romances, que segue firmemente essa tradição céltico-germânica-arturiana).
Tolkien forjou uma coleção de lendas e contos feita sob medida para os ingleses, um povo que ele sentia carecer de base mitológica. Muitas décadas depois, a maioria dos produtos culturais em inglês, de Nárnia a Hogwarts, ainda tendem a compartilhar uma estrutura e um apelo essencialmente “do Velho Mundo”.
Em muitos dos contos de fadas do império Disney, temos uma americanização parcial das formas europeias —mas ali também, o poder original pertence aos irmãos Grimm ou a Hans Christian Andersen, com heroínas ao estilo americano em geral plantadas em reinos pré-americanos.
Claro, os escritores de fantasia contemporâneos bebem de influências culturais mais amplas: existem obras do gênero ambientadas em versões da China, dos países árabes, da Índia e da África Subsaariana.
Mas os EUA apresentam uma oportunidade única para os entusiastas do fantástico. Trata-se da cultura dominante do mundo contemporâneo; quem não gostaria de ajudar a elaborar sua base mitológica? Ainda há um desafio adicional. Por serem uma nação moderna por excelência, os EUA não têm um patrimônio pré-moderno sobre o qual possam se basear da forma como Martin fez com a história da Inglaterra e da França medievais para criar seu Westeros.
Assim como pensadores políticos como Louis Hartz argumentaram que os EUA, liberal desde a sua fundação, precisam de uma tradição conservadora verdadeira, alguém poderia defender que a Grande Fantasia Americana é, na verdade, uma impossibilidade, já que esse gênero trata da transição do pré-moderno para o moderno, do encantado para o desencantado —e os EUA foram desencantados, comerciais e capitalistas desde o princípio.
Mas ninguém que conheça profundamente os EUA consideraria nossa cultura realmente desencantada. No máximo, somos o lugar onde o desencanto atingiu um limite e estagnou ou se reverteu, seja no Sul assombrado por Jesus ou na Califórnia New Age.
Temos, sim, um passado pré-moderno ancestral que consiste no legado indígena americano, ainda que seu impacto tenha sido ofuscado pela conquista e expropriação de seus bens. E estamos fascinados (ou melhor, obcecados) pelos lugares que representam nossa própria transição do pré-moderno para o moderno, desde a Nova Inglaterra puritana (visite Salém hoje se achar que o passado do país não tem uma ressonância mágica) até a paisagem do oeste americano (onde a luta pela civilização e seus descontentamentos continua até hoje).
Então sim, o material para o aspirante a escritor de fantasia americano é um pouco diferente, um pouco mais fragmentado, do que o disponível na história e mitologia europeias. Ao mesmo tempo, há material de sobra para uma mitologia muito americana —com potencial para ser tão organicamente ligada ao Novo Mundo quanto a Terra Média está à Inglaterra ou ao norte da Europa, e que poderia inclusive servir para recuperarmos alguns aspectos meio esquecidos do nosso passado.
Mencionei “Wicked” no início do texto porque “O Mágico de Oz”, de L. Frank Baum, é provavelmente a obra americana que tem uma influência mais duradoura sobre a cultura pop. Mas uma lista mais longa incluiria as revistas pulp; os contos estranhos de Edgar Rice Burroughs, assim como os livros de sua série “John Carter”; os romances “Alvin Maker”, de Orson Scott Card; “Deuses Americanos” de Neil Gaiman (um britânico que escreve fantasia americana); e, claro, a saga “A Torre Negra” de Stephen King.
Menções especiais a H.P. Lovecraft e a Ray Bradbury por trabalharem em zonas onde a fantasia se mistura com o horror ou a ficção científica (você também poderia argumentar que as “óperas espaciais”, de “Flash Gordon” a “Star Wars”, são na verdade a principal contribuição americana para o gênero de fantasia, mas eu precisaria de um novo ensaio para discutir o assunto; você também poderia dizer que os super-heróis são a forma americana de fantasia, mas aí você estaria errado).
Nenhuma dessas obras alcançou, no entanto, a influência contemporânea de Nárnia, Hogwarts e Westeros, muito menos a Terra-média de Tolkien. E isso se deve em parte ao fato de que nenhuma delas é realmente boa o suficiente. O grande romance de Gaiman tem muitas ideias interessantes, mas a mitologia não é totalmente coesa e o enredo não é memorável (“Lugar Nenhum”, romance muito britânico, é um livro superior). A saga de King “A Torre Negra” tem as ambições certas, mas sucumbe aos delírios de grandiosidade dos finais da carreira (“O Talismã”, que King co-escreveu com Peter Straub, é mais bem-sucedido).
Os modelos, junto com Oz e Hogwarts, seriam, assim, Nárnia, a Prydain de Lloyd Alexander e os romances “A Rebelião das Trevas”, de Susan Cooper. Alguns incluiriam a pentalogia “Uma Dobra no Tempo”, de Madeleine L’Engle, e a saga iniciada por “The Diamond in the Window” (o diamante na janela), de Jane Langton.
O objetivo final é simples: destronar o precioso Harry Potter e todos os seus amigos que tomam chá, libertar as crianças americanas da tirania do sistema britânico de internatos (perdemos uma guerra?) e dar-lhes um lugar mágico que corresponda à amplitude, à escala e aos horizontes impossivelmente amplos de seu próprio país.
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