Quando recebi a notícia de que tinha câncer de mama, em 2017, nem te conto o susto.
O processo de diagnóstico demorou mais de um mês, e uma das etapas mais dolorosas foram as duas biópsias a que fui submetida.
Detalhe: na segunda biópsia, realizada porque a análise da amostra anterior resultou “inconclusiva”, eu me lembro da médica, na maior boa vontade e muque forte, praticamente montando em cima de mim pra meter uma cânula mais parecida com um canudo grosso de smoothie de banana debaixo do meu peito esquerdo.
É, meus amis.
Tendo passado por isso (e ainda aqui para contar a história), celebro, portanto, um estudo inédito publicado por uma equipe de investigação do hospital Vall d’Hebron, em Barcelona.
Pela primeira vez, esse grupo de investigadores demonstrou que é possível detectar a presença de DNA tumoral circulante (ctDNA) no leite materno, abrindo passo para a criação de protocolos diagnósticos menos invasivos e tardios do que os disponíveis atualmente.
Num futuro, diz Cristina Saura Manich, uma das coordenadoras da investigação e chefe da Unidade de Mama do Vall d’Hebron, “assim como fazemos com o teste do pezinho nos bebês, poderíamos cogitar recolher amostra de leite materno de todas as mulheres depois do parto para fazer um screening de câncer de mama”.
Explicando a importância dessa proposta: nessa população específica de grávidas e lactantes, sobretudo as de 40+, um câncer de mama tende a ser detectado mais tarde e em estágios mais avançados, com maior probabilidade de metástase e maior mortalidade.
Como explica a doutora Carolina Ortiz, uma das investigadoras envolvidas, o pior prognóstico nesses casos se explica em parte pelo fato de que, durante a gravidez e o pós-parto, “há alterações consideradas normais (…) que podem esconder um tumor em desenvolvimento”.
Intitulado “Early-Stage Breast Cancer Detection in Breast Milk”, o paper foi publicado em outubro na revista Cancer Discovery.
Por meio da biópsia líquida do leite materno, diz o estudo, seria possível chegar a um diagnóstico inclusive antes de provas convencionais como mamografia (ou biópsias de tumores sólidos com canudos de smoothie de banana, por exemplo :)).
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A ‘fagulha’ que deu início à investigação aconteceu casualmente, anos atrás, quando uma jovem mãe, recém-diagnosticada com câncer de mama, procurou a equipe médica do hospital para tirar uma dúvida cruel: poderiam as células tumorais ter passado para sua filha por meio da amamentação?
Depois de esclarecer que isso seria impossível, uma vez que eventuais restos de DNA do tumor seriam degradados no intestino do lactante, a pergunta seguinte foi: e se for possível encontrar vestígios de células tumorais no leite materno?
“Na consulta, a paciente nos trouxe uma amostra de leite materno (…) que havia sido guardada em seu congelador mais de um ano antes de seu diagnóstico de câncer”, conta Saura. “Graças a ela, nosso projeto pôde começar”.
A partir das amostras desta e diversas outras voluntárias grávidas e lactantes desde então, foi possível chegar a duas conclusões principais: uma, que havia, de fato, presença detectável de DNA tumoral no leite materno das pacientes oncológicas; e que as mutações presentes correspondiam às dos tumores respectivos detectados.
O Vall d’Hebron, hospital modelo espanhol, dispõe de uma unidade multidisciplinar especial para tratar mulheres diagnosticadas com câncer durante a gravidez ou no período pós-parto.
Para o rastreamento dos “restos” tumorais no leite materno das voluntárias, foi empregada uma técnica chamada drop digital PCR, que permite quantificar com precisão a presença de DNA em amostras líquidas.`
Participaram do estudo 19 pacientes oncológicas no total.
Em apenas 2 casos não se detectou a presença de DNA tumoral. Segundo Miriam Sansó, uma das investigadoras, isso provavelmente se deve ao fato de que “essas amostras eram colostro, isto é, foram coletadas nas primeiras horas da lactação”. Todas as demais voluntárias tiveram leite coletado pelo menos 2 semanas após o início da lactação.
As biópsias líquidas não são novidade no mundo científico — DNA tumoral pode, em determinadas circunstâncias e condições, ser rastreado a partir de amostras de distintos fluidos corporais, de sangue a líquido cefalorraquidiano ou pleural, além de urina (por exemplo, como recurso complementar para detecção de câncer de bexiga), fezes e até saliva (para diagnóstico de câncer de cabeça e pescoço).
Por outro lado, técnicas indiretas também permitem atualmente complementar a avaliação do prognóstico de determinados cânceres. É o caso da metástase de mama, por meio da detecção de certas proteínas circulantes no sangue, por exemplo.
O problema é que alguns desses recursos diagnósticos ainda oferecem baixa sensibilidade e, portanto, fiabilidade, dependendo da presença de grandes quantidades de material tumoral nas amostras.
Mesmo assim, diz Ana Vivancos, também coordenadora do estudo, a existência prévia de outros tipos de biópsia líquida encorajou o questionamento dos investigadores.
“Pensamos que, por conta da proximidade do tumor, o leite materno poderia também ser uma fonte alternativa para detecção do câncer de mama”.
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Os potenciais benefícios da biópsia líquida do leite materno ficam claros em casos como o de uma das voluntárias do estudo.
Sem nenhum traço de câncer à época do nascimento de seu primeiro filho, aos 46 anos, essa paciente viria a descobrir um tumor de mama um ano e meio mais tarde por meio de exames de imagem.
No entanto, mutações no DNA já eram detectáveis em amostras do leite materno seis meses antes do diagnóstico definitivo.
Ou seja: com a biópsia líquida, essa paciente poderia ter ganhado, e muito. Seis meses, gente, pode fazer muita diferença em prognóstico e tratamento.
Segundo a equipe investigadora, o painel genômico mapeado pelo estudo, baseado em amostras de voluntárias, apresenta uma alta sensibilidade, superior a 70%, isto é, permite detectar com precisão a ocorrência de 7 de cada 10 casos.
A próxima etapa do estudo implicará em recolher amostras de 5 mil voluntárias saudáveis em todo o mundo que tenham engravidado a partir dos 40 anos (quando há mais risco) ou que tenham alguma mutação prévia como BRCA1 e BRCA2.
“Antes que essa técnica possa ser colocada em prática, esses resultados precisam de ser confirmados num maior número de pacientes”, diz Saura.
“Mas os resultados publicados até à data são encorajadores e oferecem uma nova ferramenta potencial para o diagnóstico precoce do câncer de mama numa população particularmente sensível de mulheres jovens e mães”.
“A melhor forma de continuar a aumentar a sobrevivência e a cura dos pacientes com tumores de mama é detectá-lo o mais precocemente possível, e esta é uma nova estratégia que nos pode ajudar muito nesse sentido”.