Na antiga fábrica de salgadinhos Captain Korn (Capitão Milho) em Douma, cidade vizinha de Damasco, escondia-se o maior centro de produção e armazenamento de captagon —conhecida como a “cocaína dos pobres”— na Síria.
O local, assim como várias outros com estrutura parecida, foi descoberto nesta semana pela milícia HTS (Organização para a Libertação do Levante, na sigla em árabe), que derrubou o ditador Bashar al-Assad e assumiu o poder.
A Folha esteve nesta e em outra unidade clandestina que produzia a droga sintética, em Al-Dimass, a 30 quilômetros da capital síria. A Síria responde por 80% da exportação mundial de captagon, cuja receita se tornou a principal fonte de recursos do regime. Familiares do ditador estavam envolvidos diretamente no negócio, de acordo com os rebeldes.
A fábrica de Douma fica no topo de uma montanha e, antes da queda de Assad, era vigiada por soldados das Forças Armadas sírias em guaritas. No primeiro andar, havia um depósito com dezenas de pilhas de caixas para transporte de laranjas, que servia de fachada. No subsolo se concentrava a fabricação do estimulante, um comprimido que tem efeitos semelhantes à cocaína –causa euforia e deixa a pessoa alerta e autoconfiante.
A substância ativa, o cloridrato de fenetilina, foi desenvolvida na Alemanha nos anos 1960 para tratamento de narcolepsia (distúrbio de sono excessivo) e déficit de atenção. Mas, devido ao alto potencial viciante, foi banido pelo escritório de drogas da ONU e por vários países nos anos 1980.
O captagon ficou conhecido como a droga dos jihadistas, porque era usado por combatentes extremistas islâmicos na guerra da Síria. O uso se disseminou por todo o Oriente Médio, de motoristas de caminhão e táxi que querem ficar acordados a operários de construção, militares no front e jovens nas baladas.
Integrantes da HTS mostraram como os traficantes ligados ao regime escondiam os comprimidos dentro de laranjas e maçãs de plástico, no interior de estabilizadores de voltagem, em cintos e mesas.
O depósito subterrâneo tinha dezenas de caixas desses estabilizadores. Na frente da reportagem, um combatente abriu uma delas e indicou onde estavam escondidos 3 kg de captagon, no interior de uma bobina de cobre.
A fábrica de salgadinhos pertencia ao empresário Fares al-Tout e foi confiscada em 2018 por ordem da Quarta Divisão do Exército Sírio, liderada pelo irmão de Bashar al-Assad, o temido Maher.
O centro passou a ser tocado por Amer al-Khiti, empresário próximo a Maher. No ano passado, o Reino Unido impôs sanções contra Khiti, afirmando que ele “opera e controla múltiplos negócios na Síria que permitem a produção e o tráfico de drogas, entre elas o captagon”. Os EUA impuseram sanções contra Khiti em 2020.
No ano passado, o Departamento do Tesouro americano sancionou dois primos de Assad, Samer Kamal al-Assad e Wassim Badi, também acusados de envolvimento na fabricação e contrabando dos comprimidos.
“Quando chegamos aqui, havia alguns guardas no subsolo que tinham começado a queimar as drogas”, relatou à Folha um dos soldados da HTS.
Caroline Rose, diretora do Projeto de Comércio de Captagon do New Lines Institute, afirmou à agência Reuters que a venda global de captagon movimenta em torno de US$ 10 bilhões anuais (R$ 61 bilhões), e o regime de Assad lucrava US$ 2,4 bilhões (R$ 14,6 bilhões) por ano com a droga. Segundo ela, era isso que sustentava o governo do país em guerra e sob sanções internacionais.
A HTS prometeu acabar com a produção e o contrabando de captagon na Síria. Trata-se de uma demanda de alguns dos países que apoiaram o grupo na derrubada de Assad, como o Qatar. Lá, assim como na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, na Jordânia e no Iraque, o estimulante se tornou um problema de saúde pública. Segundo o Comitê de Controle de Drogas saudita, 90% dos usuários de captagon tinham de 12 a 22 anos.
Após interceptar caixas de frutas com comprimidos de captagon escondidos no meio de laranjas, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes proibiram a importação de produtos agrícolas libaneses, que estariam vindo da Síria.
No dia em que tomou o poder na Síria, o comandante da HTS, Ahmed al-Sharaa, que antes se identificava como Abu Mohammed al-Jolani, disse que Assad havia transformado o país “na maior fábrica de captagon do mundo”. “Hoje, a Síria está sendo purificada, graças a Deus Todo-Poderoso”, afirmou em discurso.
Erradicar a droga no país, porém, será um desafio. Calcula-se que haja dezenas de locais de produção, que começaram como fábricas de fundo de quintal, mas foram confiscadas pelo governo e incorporadas aos negócios das Forças Armadas. Analistas afirmam que combatentes dos grupos rebeldes também atuam na produção, controlando uma pequena porcentagem. A droga era escoada por terra pelo Líbano, Jordânia e Iraque.
Em outra fábrica visitada pela reportagem, que ficava dentro de uma mansão com muros altos, havia uma máquina de imprimir em comprimidos e barris com cafeína, clorofórmio, soda cáustica, iodeto de potássio, formaldeído, amônia e acido clorídrico, todos componentes usados na produção. Também havia máquinas que faziam as embalagens plásticas redondas onde cabem quatro comprimidos.
Um combatente da HTS exibe etiquetas com os endereços para onde seriam exportadas as “caixas de laranja” e os “estabilizadores de voltagem”: Arábia Saudita, Bahrein e Qatar. Outro membro da milícia, de nome de guerra Abu Issa, afirmou que o grupo destruiu 70% da droga encontrada e deixou os outros 30% para que pudessem ser vistoriados. Essa quantidade restante, segundo ele, seria queimada em uma semana.