O banco central de Bashar al-Assad enviou cerca de US$ 250 milhões (R$ 1,5 bilhão) em dinheiro vivo para Moscou em um período de dois anos, quando o então ditador sírio estava endividado com o Kremlin por apoio militar, e seus parentes estavam secretamente comprando ativos na Rússia.
O Financial Times encontrou registros indicando que, enquanto a Síria enfrentava uma grave escassez de moeda estrangeira, o regime enviou por avião quantias de quase duas toneladas em cédulas de US$ 100 (R$ 600) e de € 500 (R$ 3.100) para o aeroporto de Vnukovo, em Moscou, destinadas a bancos russos sob sanções ocidentais. As remessas ocorreram de março de 2018 a setembro de 2019.
Comprovantes comerciais russos do Import Genius, um serviço de dados de exportação, mostram que em 13 de maio de 2019 um avião carregando US$ 10 milhões (R$ 60,3 milhões) em notas de US$ 100, enviadas em nome do banco central de Assad, pousou no aeroporto de Vnukovo, em Moscou.
Três meses antes, o banco central enviou cerca de € 20 milhões (R$ 126 milhões) em notas de € 500. No total, houve 21 voos, transportando um valor declarado de mais de US$ 250 milhões.
Não houve tais transferências de dinheiro entre o banco central da Síria e bancos russos antes de 2018, de acordo com os registros, cuja série começa em 2012.
As transferências incomuns de Damasco destacam como a Rússia, aliada crucial de Assad que lhe emprestou apoio militar para prolongar seu regime, tornou-se um dos destinos mais importantes para o dinheiro da Síria, à medida que as restrições do Ocidente retiravam Moscou do sistema financeiro.
Figuras da oposição e governos ocidentais acusaram o regime de Assad de saquear a riqueza síria e de recorrer a atividades criminosas para financiar a guerra e seu próprio enriquecimento. Os envios de dinheiro vivo coincidiram com a dependência da Síria do apoio militar do Kremlin, incluindo dos mercenários do grupo Wagner. Nessa mesma época, a família de Assad iniciou uma onda de compra de propriedades de luxo em Moscou.
David Schenker, ex-secretário assistente de Estado dos EUA para o Oriente Médio (2019-2021), afirmou que as transferências não eram surpreendentes, pois o regime de Assad frequentemente enviava dinheiro para o exterior para proteger seus ganhos ilícitos.
“O regime teria que levar seu dinheiro para um refúgio seguro no exterior para poder usá-lo e manter a boa vida para seu círculo interno”.
“A Rússia tem sido um refúgio para as finanças do regime de Assad há anos”, disse Eyad Hamid, pesquisador sênior do Programa de Desenvolvimento Legal Sírio, observando que Moscou se tornou um centro para evadir as sanções ocidentais impostas depois que Assad reprimiu brutalmente uma revolta em 2011.
A fuga do ex-ditador para Moscou à medida que os rebeldes se aproximavam de Damasco enfureceu alguns ex-leais ao regime, que viram isso como prova de que Assad só pensava em si mesmo.
O regime havia sido sustentado pelo Irã e por seus grupos militantes aliados, que intervieram em 2012, e pela Rússia, que levou seus aviões de guerra para atacar o que restava dos rebeldes sírios e insurgentes islâmicos em 2015.
As relações da Síria com Moscou se aprofundaram dramaticamente à medida que conselheiros militares russos fortaleceram o esforço de guerra de Assad e empresas russas se envolveram na valiosa cadeia de suprimentos de fosfato da Síria.
Mesmo com os cofres do Estado arrasados pela guerra, Assad e seus aliados próximos nos últimos seis anos assumiram o controle pessoal de setores críticos da economia, disseram pessoas com conhecimento sobre o funcionamento do regime.
A primeira-dama Asma al-Assad, ex-banqueira do JP Morgan, construiu uma estrutura poderosa influenciando os fluxos de ajuda internacional e liderando um conselho econômico presidencial secreto. Assad e seus seguidores também geraram receitas com tráfico internacional de drogas e contrabando de combustível, de acordo com os EUA.
Registros mostram que o dinheiro entregue a Moscou em 2018 e 2019 teve como destino o Banco da Corporação Financeira Russa, ou RFK, um credor russo sediado em Moscou controlado pela Rosoboronexport, a empresa estatal russa de exportação de armas.
O Tesouro dos EUA sancionou o banco este ano por facilitar transferências de dinheiro, permitindo “milhões de dólares em transações ilícitas, transferências de moeda estrangeira e esquemas de evasão de sanções em benefício do governo sírio”.
Em março de 2018, registros mostram que o banco central da Síria também enviou US$ 2 milhões (R$ 12 milhões) para outro banco russo, o TsMR Bank, que também foi sancionado pelos EUA.
Enquanto instituições financeiras russas recebiam dinheiro da Síria, outro apoiador internacional de Assad, o Irã, criou esquemas para canalizar moeda forte para Damasco. Os principais homens de confiança de Assad assumiram posições importantes nessas empresas, de acordo com registros corporativos analisados pelo FT.
Yassar Ibrahim, conselheiro econômico mais próximo de Assad, é acionista de uma empresa libanesa chamada Hokoul SAL Offshore, ao lado de sua irmã Rana, que também foi sancionada pelos EUA.
A Hokoul, segundo o Tesouro dos EUA, é dirigida pelo Corpo de Guardiões da Revolução do Irã e pelo grupo militante libanês Hezbollah para movimentar centenas de milhões de dólares “em benefício do brutal regime de Assad”. O papel de Ibrahim na empresa não havia sido relatado anteriormente.
Enquanto o cerco de sanções ocidentais forçou o regime a sair do sistema bancário em dólares, registros corporativos analisados pelo FT mostram que figuras-chave ligadas a Assad continuaram a mover ativos para a Rússia.
Em 2019, o FT relatou que a família expandida de Assad havia comprado pelo menos 20 apartamentos de luxo em Moscou a partir de 2013 usando uma série complexa de empresas e acordos de empréstimo.
Até maio de 2022, Iyad Makhlouf, primo materno de Assad e major da Inteligência Geral Síria, que supostamente monitorava, oprimia e assassinava cidadãos, estabeleceu uma empresa imobiliária em Moscou com copropriedade de seu irmão gêmeo Ihab chamada Zevelis City, mostram registros corporativos russos.
Outro irmão de Iyad, Rami Makhlouf, era o empresário mais importante do regime. Em um certo momento acreditava-se que controlava mais da metade da economia da Síria por meio de um grupo de empresas, incluindo a rede de telefonia móvel SyriaTel. Depois que Rami caiu em desgraça com o regime em 2020, sírios com conhecimento do assunto disseram que Iyad e Ihab permaneceram próximos a Bashar e sua esposa Asma.
Documentos mostram que a Zevelis City foi estabelecida por uma funcionária russa do banqueiro sírio-russo Mudalal Khoury, sancionado pelos EUA.