Em meio à aguda tensão global decorrente das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, a Rússia iniciou um exercício de retaliação nuclear maciça contra a Otan nesta quarta (25), véspera do fim da simulação anual de ataque atômico feito pela aliança militar liderada pelos Estados Unidos.
No ano passado, já sob a sombra do conflito ucraniano, o temor da coincidência da manobra ocidental Steadfast Noon e da russa Grom acabou não se concretizando, mas agora o anúncio foi feito com pompa na TV estatal pelo ministro Serguei Choigu (Defesa), em conferência com o presidente Vladimir Putin.
“A Rússia testou sua habilidade de executar um ataque retaliatório maciço”, afirmou. Ele entregou um relato do exercício a Putin. Foram lançados ao mesmo tempo um míssil intercontinental RS-24 Iars da base de Plesetsk (noroeste do país), um míssil RS-29 Sineva de um submarino nuclear no Ártico e modelos de cruzeiro por dois bombardeiros estratégicos Tu-95MS.
O Grom (trovão, em russo) era um exercício anual soviético que foi retomado em 2019 por Putin, mas que ganhou novas dimensões políticas com o recorrente recurso do Kremlin à carta das ameaças nucleares em sua disputa com o Ocidente.
Esta já estava exacerbada pela invasão da Ucrânia, em que os EUA e aliados bancam a resistência militar de Kiev, e agora escalou com a guerra entre Israel e o Hamas palestino. Putin não apoiou o ataque terrorista do grupo no dia 7 de outubro, mas tem seguido a tradição diplomática russa de se posicionar em favor dos palestinos em fóruns internacionais como a ONU.
Mais importante, sinalizou desagrado com o envio de grupos de porta-aviões americanos para dissuadir o Irã, seu aliado regional, de intervir no conflito. O fez sem sutileza, acionando patrulhas da caças MiG-31K no mar Negro, armados com mísseis hipersônicos teoricamente capazes de atingir os navios dos EUA.
O Grom ocorreu um dia antes do fim do exercício Steadfast Noon (meio-dia com firmeza, em inglês), que era tão sigiloso que só foi revelado pela Otan em 2019. Neste ano, ele envolve 60 aviões, incluindo bombardeiros com capacidade de emprego de armas nucleares B-52H e caças táticos F-35, de 13 países da aliança.
A Otan tentou enfatizar em nota que a manobra “não tem a ver com a situação atual, tanto que é realizada a mais de 1.000 km das fronteiras da Rússia”, no caso o espaço aéreo entre a Itália e a Croácia —coincidentemente, perto do teatro de operações da guerra em Israel.
Mas a mensagem é inequívoca: é um exercício de ataque nuclear, e nem se diz defensivo como os russos tentam edulcorar no caso do Grom. E a única potência atômica rival da Otan na região se chama Rússia.
A diferença principal da manobra ocidental é que ela prevê o emprego de armas nucleares táticas, de menor potência e uso contra objetivos militares mais limitados. Já a ação russa é a ideia popular do apocalipse atômico, com as ogivas ditas estratégicas, mais potentes e para obliteração de cidades inteiras.
Na prática, a contraposição dos exercícios é prova do temor de especialistas de que a crescente flexibilização doutrinária nos EUA e na Rússia sobre o uso de armas táticas possa virar uma realidade, levando a uma troca de fogo nuclear mais ampla. A doutrina atômica russa, contudo, só prevê o uso da bomba em caso de ser atacado com ela ou se o Estado estiver ameaçado por meios convencionais.
Nada disso significa, claro, que a Terceira Guerra Mundial esteja à porta, apesar de todas as interligações entre os conflitos em curso. Mas a deterioração do ambiente de segurança nuclear no mundo é a pior desde a Guerra Fria, que nos auges de 1962 e 1983 quase viu os mísseis serem disparados.
No caso russo, a noção primária é a de manter o revólver atômico na mesa, buscando coibir o apoio militar a Kiev e, agora, buscar sinalizar apoio ao Irã. Putin mesmo, contudo, já disse que usar a bomba na Ucrânia seria um estupidez.
Ao mesmo tempo, posicionou ogivas táticas na vizinha Belarus, levando a vizinha Polônia a pedir que os EUA façam o mesmo em seu território. Além disso, propagandeia sempre que pode suas novas “armas invencíveis”, como o míssil intercontinental pesado Sarmat.
Não que os EUA sejam espectadores inocentes. Sob Donald Trump, o país deixou dois tratados importantes para o controle de armas nucleares e armou submarinos com uma bomba de menor potência, sugerindo assim que ela poderia ser usada. Dizia responder a Putin, que por sua vez usou diversas vezes ameaças atômicas desde as vésperas da guerra em 2022.
No começo do ano, o russo suspendeu a participação de seu país no Novo Start, o último tratado sobre armas estratégicas em vigor. E agora, em meio a especulações de que poderia testar novas armas nucleares, pediu para o Parlamento russo derrubar a ratificação do acordo de 1996 que proibia todos os ensaios com esse tipo de bomba.
O argumento: os EUA nunca ratificaram o tratado, o que de resto o tornava ineficaz juridicamente. É verdade, mas o que importa é a sinalização, ainda que o Kremlin diga que não fará testes nucleares. O Parlamento russo encerrou o processo com a unanimidade dos senadores votando pelo fim do acordo nesta quarta, e agora resta Putin sancionar a nova lei.
A Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo, seguido de perto pelos EUA, e ambos os países concentram quase 90% das 12,5 mil ogivas do planeta, segundo a Federação dos Cientistas Americanos. A Otan ainda tem duas outras potências nucleares (Reino Unido e França), e Moscou tem sua aliada China como terceira colocada no ranking.