Certa vez, em Damasco, no subúrbio de Jaramana, sentaram-me em frente a um grupo de refugiados (e principalmente refugiadas) do Iraque.
“Nós somos mandeus”, dizia uma, “a nossa religião não é muçulmana nem cristã, é ainda mais antiga”. Os mandeus não acreditam em Jesus Cristo nem em Maomé; o seu profeta é São João Batista, e, por causa dele, veneram a água. Há talvez 100 mil mandeus no mundo; alguns deles estavam ali à minha frente.
“Nós somos yazidi e cultuamos o fogo”, diziam outros. Hoje, depois da perseguição a que foram sujeitos os yazidis pelos terroristas do Estado Islâmico (EI), este povo é mais conhecido; mas ainda muita gente ignora que, com o seu culto do fogo, estão ligados ao zoroastrismo, uma das mais antigas religiões do mundo. E ali estavam eles.
A Guerra do Iraque em 2003 foi levada a cabo por um presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que aparentemente ignorava a diferença entre xiitas e sunitas. Como imaginar que tivesse consciência da catástrofe que iria desencadear sobre religiões ainda mais desconhecidas e minoritárias? A ignorância intervencionista provocou centenas de milhares de vítimas de todas as religiões no extraordinário mosaico de história humana do Iraque.
Quando em 2010 eu conheci em Damasco os mandeus e yazidis do Iraque, a Síria era ainda um país que recebia refugiados, não um país que os gerava. A Síria era também um Estado policial em que todas as conversas eram vigiadas, os cartazes com a cara do ditador estavam por toda a parte, e todo o cuidado era pouco.
No ano seguinte, os sírios revoltaram-se, e toda a fúria do regime de Bashar Al-Assad se soltou sobre os revoltosos. Houve crimes de guerra, utilização de armas químicas e prisões a abarrotar —à ignorância intervencionista de Bush sucedeu-se a passividade de Barack Obama, que permitiu o vácuo que foi ocupado pelo terror do califado islâmico do EI.
Só os curdos, no nordeste sírio, conseguiram manter um regime estável de respeito pelas minorias e pelas mulheres, e propondo uma solução de “confederalismo democrático” para o país.
Hoje, depois de 13 anos de guerra terem desembocado numa vitoriosa ofensiva relâmpago do Hayat Tahrir al-Sham (HTS, ou “Organização de Libertação do Levante”), a questão volta a ser como preservar a riqueza humana que é a Síria, que conta não só com vários ramos do islã e do cristianismo, como ainda drusos e outras minorias. O novo poder em Damasco é de uma variante recauchutada da Al Qaeda e do Estado Islâmico, de que dizem ter-se distanciado, mas cuja história não dá descanso a ninguém.
Ainda assim, a comunidade internacional não precisa se limitar a cruzar os dedos. Podemos reforçar a conferência internacional de transição para a Síria, garantindo que nela estejam representadas as várias comunidades e que se possa apoiar a reconstrução institucional do país (e pressionar os novos poderes caso persigam as minorias do país e violem os direitos das mulheres).
Devemos também preservar a autonomia dos curdos. O caminho é estreito, mas existe. Não estamos condenados ao dilema entre o intervencionismo ignorante e a passividade cúmplice.
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