Não é de hoje que o premiê da Eslováquia, Robert Fico, distancia-se de seus companheiros de União Europeia e Otan quando o assunto é Guerra da Ucrânia. Em seu quarto mandato não consecutivo à frente de um país estabelecido nos anos 1990, parou de enviar ajuda militar a Kiev quando assumiu o cargo, em outubro de 2023, e é enfático sobre sua oposição à entrada do país invadido na aliança militar.
Esta é a primeira vez que uma delegação eslovaca vem ao Brasil chefiada pelo premiê, algo que Fico considera histórico e conecta com o que chama de pontos comuns entre as ideias sobre política externa do seu governo e do governo brasileiro.
Durante a recepção no Itamaraty nesta terça (10), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) lembrou do atentado a Fico, ocorrido em maio deste ano, para condenar a violência política.
O premiê eslovaco recebeu cinco tiros enquanto falava com apoiadores na cidade de Handlová e ficou 16 dias no hospital. Fico culpa a oposição eslovaca pelo atentado, dizendo que retórica agressiva contra ele foi responsável pelo ataque, e conecta o atirador a seus adversários a despeito de poucas evidências neste sentido. Críticos dizem que o episódio intensificou a perseguição do governo a opositores na política, na sociedade civil e no Judiciário.
Como a Guerra na Ucrânia impacta política e economicamente a Eslováquia? Quão preocupado o sr. está com o conflito escalando a tal ponto que alcance o território eslovaco?
A Guerra da Ucrânia é um tema que faz de mim uma ovelha negra na família europeia, porque tenho opiniões diferentes das de outros países da UE.
Primeiro, entendo as razões pelas quais este conflito surgiu. Mas, ao mesmo tempo, não é possível resolver problemas usando força militar e violando o direito internacional. Isso está em clara contradição com a minha visão sobre o funcionamento da política externa.
O Ocidente decidiu que usaria este conflito para enfraquecer a Rússia; sanções foram introduzidas; bilhões de euros e dólares vão para a Ucrânia, muita ajuda humanitária, muitas armas. Qual é o resultado? Os russos estão ganhando cada vez mais território, as sanções não estão funcionando, e a Ucrânia não está mais forte para possíveis negociações.
Se isso tudo vai machucar alguém, será a Ucrânia, porque ela se deixou ser arrastada para essa aventura que não pode acabar bem para o país. Ela vai perder território e não vai ser convidada para a Otan.
O sr. disse que seria favor da entrada da Ucrânia na UE, mas não na Otan.
Temos interesse em ter um vizinho estável que entre na UE, para trabalharmos juntos. Não estamos irritados com a Ucrânia, só estamos dizendo que ela se deixou ser arrastada para algo pelo Ocidente. E haverá um momento em que o Ocidente vai dizer “bem, não funcionou, então vamos sacrificar a Ucrânia”. Veja o tratado de Munique de 1938 [assinado entre potências europeias], quando a Tchecoslováquia foi sacrificada [ao ser obrigada a ceder territórios para a Alemanha nazista]. Tenho receio que algo similar possa ocorrer com a Ucrânia.
O sr. acha que esse tipo de fragmentação pode ocorrer com a Ucrânia?
Eu acho que a Ucrânia vai perder um terço do seu território, e que garantias de segurança serão oferecidas a ela, como a presença de tropas estrangeiras. Se essa é a felicidade para a Ucrânia de que todos estão falando, então acredito que os ucranianos serão traídos.
As consequências serão muito graves para a Ucrânia em termos de estabilidade.
O conflito não deveria ter acontecido, e foi uma violação do direito internacional pela Rússia. Mas não há solução militar. Eles precisam sentar e negociar. Se você é pelo menos um pouco realista, precisa reconhecer que a Rússia jamais vai deixar a Crimeia, Donetsk e Lugansk. Isso significa que a Ucrânia vai perder parte do seu território, embora a comunidade internacional não vá nunca reconhecer esse território, mas vamos todos respeitar que está sob controle russo.
E então virá a questão: haverá o interesse de que o restante do país se torne um membro da Otan? Enquanto eu for primeiro-ministro, eu nunca vou apoiar que a Ucrânia se junte à Otan. Quando se trata de UE, sim.
O sr. aceitou o convite do presidente Vladimir Putin para o Dia da Vitória, no ano que vem. É algo que dificilmente outro líder da UE consideraria. Por que o senhor aceitou o convite?
Eu visitei a Normandia, se não me engano em agosto deste ano, para o 80º aniversário da abertura da segunda frente [Ocidental, contra a Alemanha nazista] —não pude estar nas comemorações em junho porque estava me recuperando da tentativa de assassinato. Eu deveria dizer que não poderia ir e homenagear soldados americanos e franceses porque americanos mataram um milhão de civis no Iraque? Como alguém pode me dizer que não posso ir à Rússia celebrar o fim da Segunda Guerra Mundial e a vitória contra o fascismo, já que a Eslováquia foi libertada pelo Exército Vermelho [da ex-União Soviética]?
As pessoas têm noção disso na Eslováquia, e considero uma obrigação pessoal, será o 80º aniversário [da libertação da Tchecoslováquia]. Sem a União Soviética, o fascismo nunca seria derrotado, e a Segunda Guerra Mundial nunca seria vencida. E agora tenho que me explicar sobre querer ir a Moscou em maio.
Se olharmos para como os EUA violaram os direitos humanos, então eu não poderia me reunir com o embaixador americano. Mas me reúno com o embaixador americano, como me reúno com o embaixador russo.
O sr. acha que outros membros da UE deveriam mudar sua posição com relação à Rússia?
Toda guerra um dia acaba. Às vezes demora 30 anos, às vezes sete dias, mas toda guerra vai acabar. E é sempre atrás de uma mesa de negociação. Nações inteiras podem ser destruídas, mas os conflitos terminam um dia. O que eu deveria desejar, como um país eslavo? Eu deveria querer uma nova fronteira de ferro entre a Rússia e a Europa, a mesma da qual Winston Churchill falou em seu discurso na década de 1940? Espero que não.
Eu quero a uniformização das relações com a Rússia. Temos que começar um diálogo normal, porque não é normal o que está acontecendo hoje. E eu garanto, uma vez que a guerra terminar para todo mundo, será “business as usual” [tudo como antes]. Todo mundo vai para lá [Rússia], todos vão querer comprar e vender. Esqueça a moral ou qualquer outra coisa quando se trata de política internacional.
Muitos membros da UE têm receio do que pode acontecer depois, e alguns sugerem que a pressão russa não vai parar na Ucrânia. Não será “business as usual”.
Por dois anos eu só li nos jornais, não apenas eslovacos, que a Ucrânia estava ganhando, que os russos não conseguiam manter um pequeno vilarejo e estavam fugindo envergonhados do campo de batalha. Ao mesmo tempo, a mesma imprensa diz que esse Exército que não consegue ocupar uma vila com cem habitantes vai atacar o mundo inteiro.
Não sejamos tolos. Com frequência me perguntam se não temos medo na Eslováquia de que os russos venham e ocupem. Eu digo que não, com certeza não. Somos um membro da Otan, da UE, temos compromissos.
No dia em que aceitou o convite de Putin, o sr. falou por telefone com o presidente eleito dos EUA, Donald Trump. Como o sr. vê a abordagem Trump sobre a guerra e a Otan? O sr. acha que ele pode de fato chegar a um acordo para acabar com o conflito?
Acho que o novo presidente americano vai querer entregar algo. Ele fez promessas sobre terminar a guerra em 24 horas. Era conversa de campanha, claro, mas ele vai ter que entregar algo, e agora vemos algumas declarações ambíguas.
De todo modo, não será como ele disse. Se você conhece a Rússia, sabe que não pode acossar a Rússia, não funciona assim. Então, dou boas-vindas à abordagem construtiva do presidente americano.
Ao publicar sobre a conversa com Trump, o sr. mencionou as tentativas similares de assassinato que viveram. No caso do sr., críticos o acusam de perseguir adversários na oposição e na sociedade civil. Como responde a essas críticas?
A pior coisa é quando alguém tenta te matar e dizem que a culpa é sua. Não quero falar muito sobre isso. Só posso confirmar que um ativista oposicionista, ligado à oposição eslovaca, atirou em mim. Primeiro, querem te colocar na prisão: fui acusado quatro vezes, apenas por atividades políticas, sem crimes econômicos.
Venci eleições e formei um novo governo. Desde o primeiro dia, manifestações gritavam para me matar, me mandar para a prisão, que eu era um gângster, um espião russo. Isso foi um trabalho da oposição eslovaca. Mas tive sorte. É tudo que posso dizer sobre isso.
Como a Europa, em específico, deve navegar neste conflito entre a UE e a China?
Será muito lamentável quando começarmos a ter guerras comerciais. Os grandes países sempre se enfrentam e os pequenos países geralmente são as maiores vítimas disso. Há um provérbio interessante, embora não tenhamos elefantes na Eslováquia: não importa se os elefantes lutam entre si ou se acasalam, é sempre a grama que sofre.
Portanto, nós, como países pequenos, somos sempre vítimas dessas grandes disputas. E precisamos encontrar nosso próprio caminho pragmático. Por isso, rejeito essas visões unilaterais de que há apenas uma verdade, que não pode haver outra verdade.
Não será apenas o que os EUA dizem, ou apenas o que Bruxelas diz. Quando tenho a chance de influenciar as coisas na Eslováquia, buscarei a ideia de uma política externa eslovaca soberana e a proteção dos nossos interesses. Mas, novamente, com um olhar para o nosso país.
Onde o Brasil se encaixa nesta metáfora?
Precisamos ser razoáveis. Precisamos ter nossa própria opinião, não sucumbir sempre aos que são grandes.
O comércio entre Brasil e Eslováquia não é muito expressivo. Quais são seus objetivos com a visita?
O que me fascina mais no Brasil é sua visão independente em termos de política estrangeira, com mensagens fortes e iniciativas fortes, como a Aliança Global Contra a Pobreza e Contra a Fome, resultado da presidência brasileira do G20, ou o plano de paz sino-brasileiro para a Ucrânia.
Nós compartilhamos a mesma visão quando se trata da reforma das organizações internacionais, especialmente as Nações Unidas. Temos muitos pontos comuns sobre política internacional.
O sr. disse ser a favor do acordo UE-Mercosul e que trabalharia para convencer membros da UE de que era um bom acordo. Quais são as vantagens do pacto para a UE e para a Eslováquia?
Foi uma grata surpresa quando vi a presidente da Comissão Europeia em Montevidéu [onde o acordo foi assinado]. O pacto traz grandes vantagens para empresas europeias, como em relação a tarifas, e há várias ferramentas para prevenir danos aos mercados dos dois lados.
Para um país como a Eslováquia é muito interessante, então apoiamos. Mas será um processo complicado na UE. Eu só posso dizer que direi sim ao acordo e vou convencer outros a não colocarem mais obstáculos que podem destruir o sucesso alcançado em Montevidéu.
Raio-X | Robert Fico, 60
Nasceu em 1964 na então Tchecoslováquia, filho de uma lojista e de um operador de empilhadeiras, e começou a carreira política no Partido Comunista poucos anos antes da dissolução do país em República Tcheca e Eslováquia. Venceu as eleições de 2006 e chegou ao cargo de primeiro-ministro pela primeira vez a frente do partido Smer-SD. Governou de 2006 a 2010 e de novo de 2012 a 2018 em períodos marcados por escândalos de corrupção. Voltou ao cargo em 2023 e, em maio de 2024, sobreviveu a um atentado a tiros, tendo sido baleado no estômago.