Existem razões para considerar que “Ainda Estou Aqui“, de Walter Salles, tem uma importância pedagógica similar à do argentino “A História Oficial”, de Luis Puenzo, que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986.
Ambas são excelentes produções, com ótimo elenco. E, destaco: as duas surgiram num momento político sensível em seus países.
Quando Puenzo começou a gravar as primeiras cenas de Norma Aleandro como Alicia, uma professora que tarda em dar-se conta de que vive no seio de uma família envolvida na repressão da ditadura militar (1976-1983), a Argentina dava os primeiros passos de sua redemocratização.
Naqueles meados dos anos 1980, não era de conhecimento público tão amplo que havia ocorrido sequestros e torturas em massa, a desaparição forçada de milhares de pessoas e o sequestro e a entrega sistemática de filhos de opositores por parte de militares. Por meio do olhar de Alicia, o espectador vai se dando conta de que essas coisas aconteceram. Calada e aterrada, a professora entende que poderia estar tratando como filha um bebê roubado de uma mulher assassinada nos porões da ditadura.
Ao colocar o foco ali, Puenzo projetou também a busca real das mães e avós de desaparecidos, que segue até hoje.
A mais recente ditadura argentina acabou de modo mais ruidoso que a brasileira, com a desmoralização total das Forças Armadas após a derrota na Guerra das Malvinas (1982). Mesmo assim, ainda depois de eleições democráticas, a sociedade convivia com um temor de que todo aquele horror poderia voltar. Obras como a “História Oficial” participaram de uma tomada de consciência coletiva que fez com que os militares não se aventurassem nunca mais a tomar nenhuma nova iniciativa para retornar.
E eis que “Ainda Estou Aqui” também chega a um Brasil que precisa ser educado em alguns temas. Não é o primeiro filme que se faz sobre a ditadura brasileira, mas o que surge com maior potencial de ilustrar um público amplo, num momento em que parece ter virado moda questionar ou ridicularizar a democracia.
O sequestro e o assassinato de Rubens Paiva pela ditadura militar comovem, no filme, por serem contados a partir da história familiar dele. Assim como a professora Alicia, a dona de casa Eunice (Fernanda Torres) vai percebendo silenciosamente o tamanho do terror que vive e como o crime do qual é vítima permanecerá para sempre. Nada será como antes.
Para Alicia, surge a oportunidade de corrigir parcialmente o passado, entregando a menina a quem chamava de filha ao que sobrou de sua verdadeira família. No caso de Eunice, ela o faz tomando as rédeas da casa e criando os filhos sem ódio e para um país melhor.
Assim como a Argentina de Puenzo vivia o risco de um retorno dos militares, no Brasil, por conta do bolsonarismo, vai se banalizando a ideia de que um governo militar “não seria algo tão ruim assim”. Ideia que se dissemina e ganha força porque se apoia na ignorância do que foram aqueles anos. “Ainda Estou Aqui” chega num excelente momento para mostrar o que foi aquele sofrimento e impedir que regimes como aquele nunca mais voltem a bater à porta de ninguém.
Para os dois países, valem os versos da canção de Maria Elena Walsh citada em “A História Oficial”: “En el país de ‘no me acuerdo’/ Doy tres pasitos y me pierdo” (no país do “não me lembro”, dou três passinhos e me perco).
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