Ao longo da história dos Estados Unidos, diversos líderes negros defenderam a ideia de uma coalizão multirracial capaz de reformar um sistema político nacional dominado por brancos.
Em “Reconstrução Negra na América, 1860-1880”, W.E.B. Du Bois lamentava a falta de solidariedade econômica e política entre os negros e os brancos pobres no país.
Quando Martin Luther King Jr. foi assassinado, ele estava envolvido na Campanha dos Pobres, que tinha descrito como “o começo de uma nova cooperação, um novo entendimento […] por parte dos pobres de todas as cores e origens no sentido de afirmar e conquistar o direito a uma vida digna e o respeito a sua cultura e a sua dignidade”.
Quando Jesse Jackson anunciou sua campanha presidencial de 1984, disse: “As mulheres não podem ser livres até que os negros e os latinos sejam livres. Negros, brancos, mulheres, latinos, trabalhadores, indígenas, chineses, filipinos —devemos nos unir e formar a Coalizão Arco-Íris”. O movimento se tornaria famoso sob este nome.
Por fim, em 2008, Barack Obama canalizou esse espírito e transformou-o em uma aliança que elegeu o primeiro presidente negro dos EUA.
Mas, 16 anos depois, essa mesma aliança não conseguiu se unir em apoio a uma mulher negra que concorria à Presidência. Sim, estamos em um outro momento, com outros candidatos. (E sim, os republicanos alardeiam que ainda há uma coalizão multirracial sendo formada, mas do lado deles.)
De todo modo, os resultados da eleição presidencial de 2024 podem ser um sinal de que a ordem de “levantar todos os barcos” de Jackson —uma luta simultânea por direitos, aspirações e dignidade de todos os americanos, incluindo mulheres, pessoas racializadas e membros da comunidade LGBTQIA+— já não une os eleitores dos EUA como muitos progressistas achavam.
Na realidade, esses resultados sugerem que alguns eleitores latinos, asiático-americanos, árabe-americanos, mulheres brancas e, enfim, afro-americanos passaram a dar menos importância à diversidade como um conceito definidor e mobilizador.
Alguns deles, incluindo alguns democratas, defendem inclusive que a questão da diversidade não faz nada para avançar seus interesses. Isso indica uma reflexão importante a ser feita não só pelo Partido Democrata, como também pelos eleitores negros, que formam a base mais leal da sigla.
Há uma linha de pensamento no lado democrata que prega o progresso por meio do pluralismo. A crença nela murchou.
Kamala Harris trouxe alegria para a campanha, defendendo o ideal mais americano que há: o da liberdade. Mas muitos americanos –incluindo vários jovens— irritaram-se com as decisões de Joe Biden sobre a guerra na Faixa de Gaza. Algumas feministas rejeitam uma definição de mulher que inclua pessoas trans. Em 2022, vazou uma gravação em que políticos latinos na Califórnia falavam mal de negros, judeus e de descendentes de mexicanos com ancestrais indígenas. Alguns negros que moram em cidades para onde imigrantes foram enviados nos últimos anos se irritaram com a perspectiva da utilização de recursos públicos para acomodá-los.
Uma das mudanças mais significativas desta eleição foi o apoio dos eleitores latinos, em especial os eleitores latinos homens, a Donald Trump. Alguns democratas ficaram perplexos com a maneira como Trump aumentou seus números entre esse grupo e venceu em áreas que tradicionalmente votavam no Partido Democrata enquanto prometia deportações em massa e demonizava imigrantes da América Latina que estão no país ilegalmente.
Mas o raciocínio de alguns eleitores latinos tem ficado mais claro, e não se resume simplesmente à ideia de que o eleitorado latino não é um monólito.
Como me disse Rebecca Martínez, coeditora de “Betrayal U: The Politics of Belonging in Higher Education” (algo como universidade da traição, políticas de pertencimento na educação superior), quando se trata de Trump, alguns eleitores latinos pensam da seguinte maneira: “‘Eu não sou ilegal. Ele não está falando de mim.’ E ao se identificarem com isso, eles se alinham com o poder em uma tentativa de se protegerem”.
Essa noção está alinhada com as descobertas de um estudo que, publicado este ano na revista Public Opinion Quarterly, analisa possíveis razões pelas quais alguns eleitores latinos culpam os imigrantes pela “desvalorização de seu status”.
Tensões como essa não são novas na história dos EUA. Por exemplo, quando a Grande Migração —o movimento de milhões de negros americanos para o Norte e Oeste— começou, um reitor da Universidade Howard escreveu uma carta ao editor do New York Times dizendo-se preocupado com a possibilidade de que os novos migrantes do Sul diminuiriam a posição social e política dos negros que já estavam no Norte.
“Se o fluxo de trabalhadores negros para o Norte sem a restrição e o controle necessários for permitido, isso prejudicará a opinião pública e reproduzirá a proibição do Sul nos estados do Norte, e o último estágio da raça será pior que o primeiro”, disse ele.
Rashad Robinson, presidente da ONG Color of Change, enfatizou a necessidade de os democratas reconhecerem a nova realidade dos EUA se quiserem vencer as próximas eleições: “Quando achamos que as identidades das pessoas são representações automáticas de suas escolhas ou crenças, nós as alienamos”.
Neste ano, os democratas esperavam que as mulheres brancas apoiassem Kamala de maneira expressiva, sobretudo em resposta à ameaça ao direito ao aborto representada pela Suprema Corte, um terço da qual foi nomeada por Trump. Mas isso não aconteceu.
Um pesquisador de opinião democrata, Cornell Belcher, descreveu essa esperança equivocada como a ideia de que essas mulheres brancas formariam um bloco e votariam de forma radicalmente diferente de como votaram em 2020.
Belcher afirma que, por vezes, as mulheres brancas são consideradas parte do eleitorado trabalhador branco. Mas muitas delas estão na verdade se alinhando a movimentos nacionalistas brancos, e isso é muitas vezes ocultado ou minimizado nas discussões eleitorais.
Cada vez mais, alguns grupos de eleitores parecem apostar que é melhor estar ao lado de Trump do que no caminho dele. Isso me parece um mau negócio. Os instintos retrógrados do presidente eleito podem se tornar impossíveis de controlar quando forem novamente liberados. Há amplas evidências de que uma parte central da sua agenda é desfazer o máximo possível do progresso social —vide o Projeto 2025, o histórico de seu primeiro mandato, e seu slogan revanchista “Make America Great Again” (faça a América grandiosa de novo)— antes que a sua janela de oportunidade se feche.
É claro que todos os eleitores devem votar de acordo com a própria consciência. Mas também acho que, no fim, ninguém que não se alinha a uma certa noção de quem devem ser os detentores do poder político nos EUA —homens brancos proprietários— deveria se considerar verdadeiramente seguro.
O resultado da eleição é uma evidência de que a visão de uma Coalizão do Arco-Íris como um princípio de organização política está desaparecendo. Trata-se de uma prova de que muitos americanos estão dispostos a deixar de lado questões raciais e de gênero quando confrontados com uma retórica implacável sobre a falta de segurança física, econômica e cultural.
Também é difícil separar o resultado deste pleito da reação ao movimento Black Lives Matter, da demonização dos membros da comunidade LGBTQIA+ e do uso de imigrantes como bodes expiatórios para uma série de problemas sociais.
É difícil não pensar que uma das lições dele é que alguns americanos não veem a opressão dos outros como um problema deles —que eles compraram a lógica falaciosa de que a prosperidade pessoal e a busca por direitos iguais e por justiça social no geral não podem coexistir.
Parte da tristeza de muitos eleitores hoje é a percepção de que a dor que pode ser imposta a algumas mulheres e minorias no futuro próximo terá sido facilitada pelos votos de outras mulheres e minorias —a percepção de que talvez estejamos chegando ao fim do arco-íris.