Símbolo da brutalidade da Guerra da Ucrânia, Mariupol hoje é uma cidade em renascimento, um canteiro de obras e vitrine do esforço do Kremlin de mostrar que não entrou no país vizinho apenas como uma força de destruição.
Na superfície, está dando certo. Hoje a cidade é uma espécie de dínamo da economia da região de Donetsk, da qual é a segunda principal cidade após a capital regional homônima. Há tapumes e guindastes para todos os lados, e bairros inteiros emergindo na paisagem.
O contraste com a imagem de 20 de maio de 2022, quando o cerco de 82 dias à cidade acabou com a rendição dos últimos fuzileiros navais e membros do infame Batalhão Azov entocados no gigantesco complexo metalúrgico Azovstal, é claro.
Mariupol é importante: porto do mar de Azov, faz a ligação entre as áreas russófonas do leste ucraniano à Crimeia, anexada em 2014. A manutenção da ponte terrestre ligando a península à Rússia continental é um dos principais ganhos estratégicos de Vladimir Putin na guerra até aqui.
Saíram de cartaz as cenas de terror do documentário “20 Dias em Mariupol” (Mstislav Tchernov, 2023), que ganhou o Oscar da categoria neste ano, e entraram esquetes ao estilo “Extreme Makeover: Reconstrução Total”.
Segundo as contas da chancelaria russa, 80% das edificações de Mariupol haviam sido destruídas ou danificadas, um índice semelhante ao de ícones da guerra moderna, como Ypres (Bélgica, 1915) e Stalingrado (União Soviética, 1943).
Uma parte significativa das ruínas segue lá. No dia em que passou pela cidade, a reportagem não viu um setor dela que não abrigasse casas destruídas ou em reconstrução. Na região central, o trabalho de renovação é mais intenso, e fachadas cor de creme contrastam com os escombros.
As estimativas de fatalidades do cerco variam muito. A Rússia fala em 3.000 mortos, a Ucrânia, em até 25 mil. No meio do caminho há contas como a da ONG Human Rights Watch, de cerca de 8.000 vítimas, fora um número incerto de refugiados.
A composição da cidade certamente mudou, embora não haja como avaliar isso. A prefeitura local diz que há 300 mil pessoas morando hoje na cidade, ante as 500 mil do pré-guerra, mas isso não significa que são todos antigos habitantes.
Há um influxo grande de trabalhadores dos vilarejos arruinados em toda a zona agora sob controle russo em Donetsk e regiões vizinhas. O foco é a construção civil, e um número não desprezível é de pessoas ucranianas étnicas, segundo as autoridades.
“A integração enfrenta muitos problemas, mas o regime russo pode também dizer que está fazendo progresso na restauração da vida cotidiana normal. Isso significa que o tecido social e político será profundamente alterado o quão mais a ocupação continuar”, escreve Nikolai Petrov, do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança, de Berlim.
Críticos como ele veem a restauração, um projeto que no total das quatro regiões anexadas mas não controladas totalmente por Putin na Ucrânia custa R$ 60 bilhões anuais, um instrumento de propaganda.
Para eles, é uma versão moderna das “vilas Potemkin” que o famoso político czarista homônimo teria montado só com fachadas para agradar Catarina, a Grande, sua amante, numa viagem da soberana à recém-adquirida Crimeia, no século 18.
Pode ser, mas o impacto das obras na paisagem e na economia é inegável. Há estranhamentos, contudo, refletidos no destino dos símbolos mais pungentes da batalha de 2022. No coração da cidade, o Teatro Regional de Drama de Donetsk está em plena reconstrução.
Em 16 de março, logo depois da invasão, o local explodiu, matando qualquer coisa entre 300 e 600 pessoas. A Ucrânia e entidades como a Anistia Internacional acusaram um bombardeio das forças russas, a versão de Moscou é que foi uma explosão interna provocada pelo Batalhão Azov.
Até para reforçar a versão que será contada em placas no local agora, o prédio está sendo renovado.
Já o principal ponto da batalha de Mariupol, a usina Azovstal, ainda tem destino incerto. A extensão do dano só é comparável ao gigantismo da instalação: com 11 km2, quase o tamanho de São Caetano do Sul (SP), ela ocupava 10% da área da cidade e embutia bairros residenciais para seus 10 mil funcionários, hotéis e shoppings.
Quase nada restou intacto, e um trem com refugiados que ambos os lados dizem ter sido atacado pelo outro no começo da guerra resiste como uma carcaça perto da usina, que era uma das maiores metalúrgicas da Europa.
A prefeitura local primeiro queria implodir tudo, mas agora o plano é transformar a área num parque memorial da guerra. Como fazer isso sendo que apenas 10% da área foi limpa de minas e explosivos é um mistério, e mesmo a natureza da ruína a torna difícil de isolar como monumento.
Enquanto o debate corre, um marco ligado à Azovstal foi renovado em 2023: o monumento em homenagem aos funcionários da fábrica, aberta em 1933, que tombaram lutando pela União Soviética na Segunda Guerra Mundial.
A ironia aqui salta aos olhos: uma placa na lateral conta quem pagou a restauração: o Grupo Wagner do líder mercenário Ievguêni Prigojin, que esteve à frente de um motim derrotado contra a cúpula militar de Putin em junho de 2023 e morreu dois meses depois.
O espólio de sua tentacular organização foi dividido entre inimigos. Com forte atuação na Ucrânia até a queda de Bakhmut, em maio do ano passado, o Wagner era candidato certo a estar na linha de frente dos projetos de reconstrução que ora fazem Mariupol renascer com nova cara.