O Ocidente ignora as causas do conflito que levaram Vladimir Putin a invadir a Ucrânia em 2022, e as populações russas no leste do país sofrem com ataques diários de Kiev há dez anos.
O raciocínio, corrente nas ruas de Donetsk, a capital da autoproclamada república popular homônima que foi incorporada por Putin há quase três anos, é destrinchado à Folha pela representante da chancelaria de Moscou na região, Natalia Mikhailova.
O próprio prédio em que ela recebe a reportagem explicita a narrativa em disputa. Em sua frente foram instalados monumentos com dois soldados, um deles da Segunda Guerra Mundial e outro, daquilo que o Kremlin chama de operação militar especial.
A ideia é óbvia: galvanizar uma memória comum dos dois conflitos, que definiram o caráter dessa região. “Nós somos diferentes”, diz Natalia, uma nativa de Donetsk.
“Estávamos lutando com pás em 2014”, afirma, creditando à guerra atual a melhoria nas condições relativas da cidade. “Somos atacados diariamente desde 2014, mas a linha de frente agora não está a 2 km.”
Ela se refere a Avdiivka, uma cidadezinha reduzida a ruínas ao lado de Donetsk, que até fevereiro era a linha de frente da guerra civil tornada interestatal em 2022. De lá, os ucranianos bombardeavam Donetsk com artilharia.
“Agora, há os drones. Decidimos que todos os ônibus civis terão equipamentos para embaralhar o sinal dos drone, depois que mais uma menina foi morta em um ataque no fim de outubro”, diz. Ela foi incluída no rol das pouco mais de 300 crianças da capital regional mortas desde 2014.
Não há, na conversa com Natalia, muito espaço para relativismo. Sua visão acerca de quem começou a guerra é imutável: foi Kiev, após a derrubada do governo pró-Moscou em 2014.
“Eles fizeram de tudo para tornar nossa vida um inferno. Proibiram a nossa língua, cortaram nosso suprimento regular de água”, afirma, em relação ao problema mais comentado por moradores da cidade.
“Isso vai melhorar quando conquistarmos Slaviansk”, disse, referindo-se a um dos bastiões ucranianos remanescentes em Donetsk, que Natalia calcula hoje ser 60% sob domínio russo.
A realidade da segregação demográfica, provocada por anos de combates exacerbados a partir de 2022, não se refletiu, segundo ela, na composição populacional. “Estamos mais ou menos como antes”, declara, não sendo precisa se isso era referência à histórica russofonia da região ou ao censo ucraniano de 2001, que colocava os russos étnicos como 40% da população.
A melhoria da situação na capital, diz Natalia, não permite observações róseas sobre a região. “Temos ao menos dez feridos todos os dias, muitos deles morrendo”, afirma. “As pessoas em vários locais ainda não conseguem se deslocar para o trabalho, com impacto econômico relevante.”
E o que a representante do Kremlin diz sobre os aliados de Volodimir Zelenski? “Eu quero que o Ocidente nos esqueça”, afirma, dissertando sobre o emprego de armas americanas e europeias contra a Rússia na guerra.