Para um visitante ocasional, o som da defesa antiaérea em ação nos céus de Donetsk que avança noite adentro sugere os perigos de uma zona de guerra. Para seus moradores, é um sinal de alívio.
“Foram dez anos de bombardeio de artilharia diário. Agora, já tem uns dois meses que só temos de nos defender de drones”, afirmou Aleksandr, um integrante do movimento separatista que em 2014 iniciou a guerra civil na região.
Para ele, que pediu para não ter o sobrenome divulgado, e outras pessoas ouvidas pela reportagem na capital da província homônima de Donetsk, a invasão promovida por Vladimir Putin em 2022 representa não uma agressão, mas uma libertação.
São visões inconciliáveis com as de Kiev, decorrentes da demografia e da cultura locais. A região é historicamente russófona, mas o governo de Volodimir Zelenski diz que houve limpeza étnica para alterar a composição que dava maioria aos ucranianos.
Hoje, seja como for, Donetsk é inequivocamente uma cidade russa. A capital caiu para os separatistas inconformados com a derrubada do governo pró-Moscou no início de 2014 e assim ficou, mas a linha de frente começava a 2 km do centro, no subúrbio de Avdiivka.
Hoje uma ruína de fazer inveja a Stalingrado na Segunda Guerra Mundial, a cidadezinha foi tomada em fevereiro, dando início à ofensiva ainda em curso de Putin na região. “A artilharia era disparada de lá”, diz Oleg, membro das forças de segurança locais.
O entorno de Donetsk é um retrato morto daquela realidade: casas e campos devastados, minas terrestres a céu aberto ameaçando os carros que se aventuram por suas estradinhas, árvores calcinadas. Mas o fogo agora está virado para o outro lado, e é o que importa aos separatistas e à população em geral.
A guerra civil veio ao mesmo tempo em que Putin patrocinou a anexação da Crimeia, uma região histórica russa que havia sido cedida a Kiev num capricho da liderança soviética em 1954. Diferentemente da península, contudo, no leste ucraniano o russo não foi tão incisivo no esforço de separação.
Um dos motivos era o custo, mas havia considerações políticas. Ao manter o conflito congelado, definição irrelevante para os 14 mil mortos ao todo na região até 2022, Putin mantinha sem muito esforço a Ucrânia fora das estruturas ocidentais, como a aliança militar Otan.
Deu um ultimato para uma solução definitiva para a questão, em seus termos, em 2021. Não foi ouvido e, para surpresa geral, foi às vias de fato, logo depois de enfim ter reconhecido a independência das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. “Foi um dos dias mais felizes da minha vida”, disse Oleg.
Não é fácil encontrar dissenso na cidade, o que é natural em uma zona de guerra. Mas a reportagem foi abordada por um garçom num café que, ouvindo a conversa em inglês na mesa, não hesitou: “Como eu faço para sair daqui?”.
Questionado sobre seus motivos, o rapaz disse que não quer viver num lugar em que há blindados e caminhões militares na rua. Há também a tentação de arriscar entrar no Exército —na região, o soldo mensal a voluntários equivale a R$ 12,3 mil, uma pequena fortuna.
A conversa não vai a lugar nenhum, mas encontra eco quando a reportagem esbarra com um soldado da região de Tuva, 4.000 km a leste dali.
De feições mongóis como seus compatriotas da distante república russa, o militar fala mal russo e inglês. Não é um local de Donetsk lutando por sua terra. Ao descobrir a profissão do interlocutor, questionou como se houvesse resposta possível: “Você sabe quando a guerra vai acabar?”.
Há sinais mais convencionais de preocupações com as incertezas em torno da região. “Água”, diz sem pestanejar Mikhail, um estudante de economia que apoia fervorosamente Putin, instado ao citar qual o maior problema da região.
Com a destruição de canais e o corte deliberado do fornecimento por parte dos ucranianos, os separatistas tiveram de recorrer a um sistema de água baseado no rio Don, que cruza a cidade. Ele não tem pressão suficiente, e só há fornecimento estável das 6h às 12h todo dia.
“Quem mora em prédio alto costuma ter de levar baldes para casa”, conta o estudante, que preferiu só divulgar o prenome. A administração local reconhece a realidade e diz que só deve melhorar se os russos tomarem os reservatórios de Slaviansk, 120 km ao norte de Donetsk.
Há blecautes eventuais, resultado dos danos ao longo dos anos às redes de distribuição e ao desligamento da usina nuclear de Zaporíjia, tomada pelos russos.
Dentro de Donetsk, há bastante movimentação militar, mas não os postos de controle que se veem em Melitopol (Zaporíjia) e Guenitchesk (Kherson), outras duas capitais administrativas das forças russas.
Cafés e restaurantes voltaram a ter movimento, ainda que vários prédios tenham suas janelas substituídas por tapumes de madeira.
Lojas de artigos militares dividem espaço com redes autóctones que anteciparam a substituição imposta à Rússia pelas sanções ocidentais: se no país de Putin o McDonald’s virou Gostoso e Ponto, em Donetsk havia anos já era o Don Mak, sem disfarçar o M amarelo da marca americana.
Símbolos do passado mais pujante da cidade seguem por lá, a começar pela Arena Donbass, estádio inaugurado em 2009 que servia ao Shaktar Donetsk, time que hoje está baseado em Lviv (oeste), e foi palco de jogos da Eurocopa de 2012. O local está fechado, com o interior danificado, desde 2014.