Em um período de cinco anos, muitas coisas mudaram na Bolívia. Mas duas delas se mantiveram similares. O país, que naquela época viveu uma crise social profunda, agora mergulha novamente na instabilidade; e o protagonista dessa trama, Evo Morales, permanece como seu personagem central.
Em novembro de 2019, o ex-sindicalista e líder cocaleiro, prestes a completar 14 anos como presidente, renunciou após forte pressão popular, em meio a uma contestada reeleição e a um empurrão da alta cúpula militar. Um ano depois, seu pupilo Luis Arce foi eleito.
Neste 2024, protestos voltam a tomar conta de importantes regiões, agora em apoio a Evo. O país atravessa adversidades econômicas —o antigo boom das commodities, no caso boliviano do gás natural, deu lugar à escassez do recurso e à dificuldade de diversificar o mercado.
A indisposição popular voltou a escalar, e no meio disso há dois líderes políticos que, antes aliados, agora são inimigos de primeira hora. Recapitule os principais capítulos da história recente da Bolívia para entender: como está o país andino cinco anos após a renúncia de Evo Morales?
Quem é Evo e como foram seus governos?
Primeiro indígena a ser eleito presidente de um país no qual cerca de metade da população é indígena, Evo Morales, hoje com 65 anos, era um dirigente sindical e líder do setor de coca. Eleito em 2005, assumiu em 2006. Depois, foi reeleito consecutivamente em 2009 e em 2014.
Seus três governos promoveram a inclusão e o reconhecimento da população e da cultura indígenas. Surfando no preço das commodities, ele distribuiu benefícios sociais. A pobreza foi de mais 60% a cerca de 35%.
Enquanto isso, ele se aliou a outros líderes de esquerda na região. A saber: Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no Brasil, Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela e o casal Néstor e Cristina Kirchner na Argentina.
Aprovou em 2009 uma nova Constituição que previa que presidentes eleitos tivessem direito a apenas dois mandatos. Em 2016, chamou a população às urnas para um plebiscito que propunha acabar com o limite. Perdeu. Um ano depois, a mais alta corte do país, à época alinhada ao chamado evismo, validou seu desejo e abriu as portas para que ele concorresse a um quarto mandato.
Àquela altura, parte da população, dos analistas e da comunidade internacional já via criticamente os ímpetos de Evo de seguir agarrado ao poder. Quando ele concorreu em 2019, o órgão eleitoral disse que ele havia sido reeleito em primeiro turno, ainda que após alguns vaivéns. Organismos internacionais apontaram irregularidades no processo de análise dos votos.
A população foi às ruas, em atos que ganharam contornos violentos. O centro e a direita bolivianos impulsionaram as manifestações. O setor militar, enfim, pressionou Evo e exigiu que renunciasse.
Ele assim o fez em 10 de dezembro de 2019, afirmando que o episódio se tratava de um golpe com apoio do exterior. Evo se exilou no México. Pouco depois, mudou-se para a Argentina, do então peronista Alberto Fernández. Ele estava prestes a completar 14 ininterruptos anos no poder.
O que aconteceu após sua renúncia?
Atropelando ritos tradicionais, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añez, assumiu a Presidência. Ela hoje está presa, condenada por golpe de Estado, em um julgamento controverso e no qual organizações de direitos humanos apontaram irregularidades.
Ela ficou no poder por um ano, e sua administração foi marcada por uma gestão descontrolada da crise sanitária provocada pela pandemia e por casos de corrupção e de repressão. Até que o país promoveu novas eleições, em outubro de 2020. O eleito foi um até então aliado muito próximo de Evo Morales, Luis “Lucho” Arce, também do MAS (Movimento ao Socialismo), o partido de Evo. Essa parceria iria mudar em muito pouco tempo.
Quem é Luis Arce?
Economista, professor universitário e ex-funcionário do Banco Central, Arce foi o ministro da Economia de Evo em seus três mandatos. Em conversa recente com a reportagem, Evo disse que não o conhecia, mas que o aceitou após indicação de seu vice, o intelectual Álvaro García Linera. A economia surfava nas exportações do gás natural, e Arce foi um ministro muito popular.
Na Presidência, a história foi outra. Ele começou a ver sua popularidade em declínio especialmente em razão da dificuldade econômica. Em junho, militares tentaram tomar o poder à força, mas acabaram presos, em um evento que tem múltiplas versões.
Evo disse que o próprio Arce teria tramado a história para ganhar popularidade. O presidente nega. Fato é que Lucho está desgastado agora que acaba de completar quatro anos de gestão.
Qual o motivo dos protestos atuais?
Além da frustração econômica, a relação Evo-Arce se deteriorou de forma rápida. Evo insiste em concorrer novamente à Presidência nas eleições de 2025, ainda que há um ano a mesma corte que o havia dado cartão verde tenha voltado atrás e dito que o limite presidencial no país deve ser de dois mandatos, sejam eles contínuos ou não. Nesta sexta-feira (8) o Tribunal Constitucional revalidou essa decisão, em um novo balde de água fria para o ex-presidente.
Arce já criticava a tentativa de Evo de seguir no poder quando assumiu o Palácio Quemado, e agora o faz em tom ainda mais elevado. O ex-presidente, por sua vez, diz que seu antigo pupilo é um traidor que seguiu o caminho da direita política.
Além da tentativa de Evo de novamente concorrer à reeleição, outros dois fatores ganharam destaque.
Em primeiro lugar, o ex-presidente voltou a ser acusado de manter relações sexuais com menores de idade —e inclusive de ter tido um filho com uma delas—, e do crime de tráfico de pessoas, por supostamente ter levado essas meninas para trabalhar com ele e abusar delas.
A denúncia foi formalizada na Bolívia e também na Argentina. Evo se nega a comentar o assunto. Como não compareceu para prestar esclarecimentos, ele tem um mandato de prisão contra ele.
Em segundo lugar, no final de outubro ele denunciou uma suposta tentativa de assassinato a tiros contra ele. Evo afirma que a operação foi ordenada por um dos ministros do atual governo e teve anuência de Arce.
O governo, por sua vez, diz que investigará o episódio, e já sugeriu a possibilidade de um autoatentado armado por Evo. Nada foi esclarecido. Ex-líderes regionais se manifestaram, mas não o presidente Lula (PT). O Itamaraty tampouco se pronunciou e, quando questionado, disse estar esperando mais detalhes.
Lula era próximo de Evo, mas também o é de Arce. O Brasil foi um ator importante para que a Bolívia entrasse no Mercosul. Também acredita que o país vizinho pode servir para escoar o gás que poderia vir da Argentina para o território brasileiro.
Os protestos das últimas semanas escalaram a ponto de evistas tomarem o controle de quartéis e fazerem dezenas de militares reféns.
Há perspectiva de solução?
Não. À reportagem, Evo disse que “não negocia com traidor” —”Não poderia acreditar que quem estava quase 14 anos como meu ministro tentaria me matar”, disse. Já membros próximos a Arce dizem que o governo está numa sinuca de bico.
Nas palavras de um deles, a administração sabe que a viabilidade política de Evo estaria minada, mas também que a tradição boliviana mostra que paz é mais importante que Justiça. Trocando em miúdos: há medo de que um aumento da repressão contra os bloqueios de vias públicas, que geraram caos e desabastecimento, impulsione ainda mais os manifestantes.
O motivo oficial dos protestos é a economia, que de fato diminui o poder de compra da população. Já os motivos reais de Evo, dizem analistas locais, é anular as acusações contra si mesmo e de alguma maneira abrir caminho para concorrer em 2025.