O futuro é do Partido Democrata porque a demografia é implacável. Esse foi o consenso reinante durante muitos anos nos Estados Unidos, a partir de um influente livro dos cientistas políticos John Judis e Ruy Teixeira, “A Emergente Maioria Democrata”.
Os Estados Unidos serão um país cada vez menos branco, com maior grau de instrução e mais jovem —eleitorados cativos dos democratas.
Faltou combinar com o eleitor americano.
Em 2016, quando a democrata Hillary Clinton perdeu para o republicano Donald Trump, ficou claro que a classe média baixa trabalhadora, de menor grau de instrução, tinha abandonado os democratas. Agora, em 2024, uma parte importante da “coalizão inexorável” dos democratas ruiu —hispânicos, esse eleitorado que mais cresce no país, migrando velozmente para a direita, e também parte dos eleitores negros.
Serão feitas várias autópsias do colapso do Partido Democrata na eleição deste ano. Se o presidente Joe Biden tivesse desistido antes da candidatura, haveria tempo para primárias e teria havido uma escolha mais testada. O apoio irredutível de Biden a Israel custou milhares de votos de árabe-americanos, cruciais em um estado-chave como Michigan.
Apesar de ter feito uma campanha eficaz, a candidata Kamala Harris não conseguiu convencer os eleitores independentes de que faria mudanças na política econômica. O eleitorado do Cinturão da Ferrugem não aceita a imposição de veículos elétricos.
Tudo isso teve um peso, claro. Mas o principal é: democratas estão vendendo um produto que a maioria dos americanos não quer comprar. O Partido Democrata oferece fibras, vegetais e legumes, e o eleitor americano quer carne vermelha e doces calóricos.
Pesquisas mostram que 54% dos americanos apoiam deportação em massa, uma das principais propostas de Trump. Segundo levantamento YouGov, 45% apoiam o veto à terapia hormonal para transição de gênero em jovens.
Apenas 12% acham que o aborto deveria ser ilegal em qualquer circunstância, segundo o Gallup – mas a eleição mostrou que essa questão, ao contrário do que ocorreu na eleição legislativa de 2022, não foi suficiente para virar o jogo.
No final do ano passado, os mesmos Ruy Teixeira e John Judis escreveram outro livro, “Onde Foram Parar os Democratas?”, alertando para a dissonância do partido com as posições do eleitorado.
Depois de 2016, esperava-se uma reorientação do Partido Democrata para se acomodar às aspirações do eleitorado. Uma tentativa de reconquistar o eleitorado branco trabalhador, os tais órfãos da globalização, revoltados contra os empregos roubados pela globalização. Também o choque com a plataforma mais à esquerda em questões como religião e atletas transgênero.
Mas o que se viu nas primárias de 2020 foi o contrário. Uma guinada para esquerda. Kamala passou sua rápida campanha tentando se desassociar de posições que havia defendido em 2019 —transição de gênero para prisioneiros, veto à exploração de gás de xisto, descriminalização de imigrantes indocumentados, corte de recursos para as polícias. Não foi muito crível.
O eleitorado claramente rejeitava o governo de Biden. Na média em seu mandato, Biden teve 43% de popularidade segundo o Gallup. Historicamente, os presidentes que conseguiram se reeleger tiveram média de ao menos 49%.
Sim, a inflação vinha caindo após chegar a um pico em 2021. O desemprego está em nível historicamente baixo. E após medidas de Biden em junho, a entrada de migrantes em situação irregular pela fronteira do México voltou aos níveis do governo Trump.
Mas tudo isso, de alguma maneira, não foi suficiente para convencer o eleitor a votar em sua sucessora. O eleitorado queria mudança. E por mais que Kamala tentasse se dissociar de Biden, no limite de parecer desleal, seu retrato como candidata da mudança não colou.
Sincericídios não ajudaram. “Eu não faria uma única coisa diferente do que Biden fez”, disse em entrevista ao programa The View (tentou consertar depois, dizendo que teria republicanos em seu secretariado, mas era tarde).
Tampouco é possível dizer que a eleição deste ano pode ser explicada apenas pelo carisma inquebrantável de Trump. Sim, tal como ele disse: “eu posso estar de pé no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém que não vou perder votos”. E os eleitores ignoraram o fato de ele ter tentado reverter o resultado da eleição passada, ser condenado por crimes, entre outros probleminhas.
Mas isso vale para seus apoiadores raiz. E ele precisou de muitos independentes e republicanos mais moderados para vencer. Isso fica patente no desempenho dos republicanos em todos os níveis. Além de potencialmente levarem o voto popular pela primeira vez desde 2004 (George W. Bush em união nacional pós-11 de Setembro), Republicanos ganharam o controle do Senado com boa margem (ao menos 4 assentos) e ainda podem manter a maioria na Câmara.
Quando venceu em 2020, Joe Biden afirmou que Trump havia sido “um momento de aberração” na história dos Estados Unidos. Cada vez mais, parece que o interlúdio foi Biden, e o futuro, pelo menos nos próximos anos, tem a cara de Donald Trump.