Se era impossível prever o resultado da eleição americana, o triunfo do republicano Donald Trump traz a garantia de mais emoções para um mundo que vive o período mais agudo de conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial.
Em favor do populista, há seu notório temperamento mercurial. Sim, Trump pode até surpreender positivamente, até porque o foco de sua campanha foi essencialmente doméstico.
Mas sua ficha corrida não permite colocar muito dinheiro nisso. O fato de ele ter presidido sobre um quadriênio de turbulência, muita dela autoimposta em nome da tal disrupção que sua geração de populistas tenta promover, dá pistas sobre como será o novo mandato, mas não certezas.
Os focos mais imediatos estão onde a morte grassa, a Ucrânia e o Oriente Médio, palco de guerras com assustadoras conexões. Se não há um sistema de alianças globais semelhante ao que levou à guerra de 1914, uma olhada no mapa geopolítico aponta uma divisão mais agressiva do planeta em blocos.
Isso tem em Trump um catalisador. Em 2017, quando lançou suas medidas tarifárias contra a China, ele disparou a Guerra Fria 2.0 que cozinhava com a ascensão econômica do colosso comunista, exacerbada sob Xi Jinping.
Não houve esfera das relações internacionais que não fosse contaminada pela retórica de conflito com Pequim de Trump. Da submissão de Hong Kong à ditadura chinesa ao desmonte do controle de armas nucleares com a Rússia, tudo passou pelo conflito entre as potências emergente e consolidada do século 21.
O argumento dos defensores de Trump é que Joe Biden provou-se ainda mais radical que o republicano nesse quesito, apesar da fala mansa. Isso dito, Estados Unidos e China seguem rivais siameses na interdependência econômica, apesar de todo o discurso de “um outro mundo é possível” que se ouviu na cúpula dos Brics na Rússia.
O país de Vladimir Putin estará no centro das atenções agora devido às vagas promessas de Trump de acabar com a guerra na Europa em um dia. Isso, por óbvio, não vai acontecer desta forma, mas Volodimir Zelenski tem de se preparar para o pior, no seu ponto de vista.
A ideia de que alguma acomodação que implique perda territorial para Kiev é inevitável já permeia discursos Europa afora, e pelos custos envolvidos seria algo inevitável à mesa mesmo se Kamala Harris tivesse vencido.
Não é fato líquido que Putin será necessariamente favorecido. As propostas já vazadas de paz no campo de Trump desconsideram o momento militar da Rússia, e qualquer acordo precisaria passar pela China.
Se legitimar Xi não parece nos planos de Trump, os dias do apoio gradual do Ocidente a Kiev parecem contados, e um Trump que realmente morra de amores pelo Kremlin pode muito bem deixar Putin simplesmente ir em frente. Nenhum cenário parece bom para Zelenski.
Já no Oriente Médio, é bastante presumível que o Trump 2.0 redobre seu apoio a Israel no momento em que o Estado judeu tenta resolver suas pendências regionais manu militari. Se o conflito foi causado pela demência assassina do Hamas no 7 de Outubro, sua continuidade depende do convênio Tel Aviv-Washington.
Aqui é importante lembrar que, diferentemente do caso da Ucrânia, a posição de Trump foi provada na prática. A série de acordos que desenhavam um Oriente Médio com árabes moderados ao lado de Tel Aviv ante o eixo de prepostos do Irã foi elaborada em seu primeiro governo.
A ideia encontrou vasta aceitação nas ditaduras petrolíferas locais, e a paz tinha tudo para alcançar Riad. A guerra e o sangue derramado em Gaza impediram isso, restando saber se o modelo anterior, que basicamente rifava os palestinos em favor do arranjo maior, é passível de ser resgatado.
Da forma com que as coisas se encaminharam, sim, mas talvez o acerto de contas com o Irã acabe ocorrendo de forma violenta. Novamente, como na Ucrânia, a resultante pode ser até alguma paz, mas sabe-se lá a que custo.
Outras fronteiras se fazem evidentes, a começar pela Coreia do Norte, com quem Trump brincou de guerra e paz com particular empenho quando estava na Casa Branca.
Com Kim Jong-un balançando um acordo de defesa mútua com a Rússia, disparando mísseis poderosos, e Seul empoderada sob Biden, a península coreana apresenta um desafio muito mais complexo hoje do que em 2016.
Aqui, os interesses de Trump e Xi convergem: o chinês assiste quieto, mas inquieto, à desenvoltura do ditador ao lado de Putin. O russo é o maior parceiro da China, por conveniências estratégicas, mas é também um peso para Pequim.
Os anos Biden inverteram o desprezo transatlântico de Trump pela Otan, até porque a Rússia ajudou, mas aprofundaram suas políticas de confronto com a China. Um mar mais agitado aguarda o republicano, que não surfa uma onda tão clara.
A vaga conservadora de 2024 enfrenta mais anteparos do que o tsunami de 2016, que expôs o mundo de Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e outros. A direita cresce na Europa, mas a reação a ela também, como se viu nas recentes eleições na França e no Reino Unido. A tensão é constante.
Mesmo na periferia, o Brasil, o júbilo dos bolsonaristas com seu ídolo americano não é profecia inevitável sobre 2026, não menos porque o Trump local está inelegível. Mas o presidente Lula deveria observar com atenção a derrocada de Biden, vencedor em 2020 numa posição análoga ao do petista dois anos depois.