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Brasileira é nora de um dos fundadores do Hamas – 21/10/2023 – Mundo

A Folha esteve em 2014 na Cidade de Gaza, quando conversou com a brasileira Umm Abdo, à época casada com o filho de um dos fundadores do Hamas. A reportagem pode ser lida abaixo.

Quando Said acompanha a Folha até a sala onde sua mulher espera, coberta pelo véu negro, ele avisa: não tente apertar a mão dela. Gentil, mas rígido, ele é filho de Abd al-Fatah Dukhan, também presente na casa e um dos responsáveis pela Primeira Intifada —revolta popular palestina contra Israel, de 1987 a 1993— e também pela fundação da facção radical palestina Hamas.

A reportagem não está ali, porém, para conversar com ele, e sim com sua mulher: a nora do fundador do Hamas é hoje [em 2014] a única pessoa cidadã brasileira em Gaza, exceto casos de palestinos com a dupla cidadania.

Ela pede para usar o nome árabe Umm Abdo (apenas “a mãe de Abdo”), em vez do seu de batismo. Umm Abdo é avessa à ideia de se tornar uma celebridade —”não quero ser famosa”. Não aceitou ser fotografada.

Mas ela se dispôs a contar a história de sua ida para Gaza e sua visão sobre o conflito entre Hamas e Israel, que deixou mais de 2.000 mortos entre julho e agosto [de 2014].

Umm Abdo, 29, nasceu em Criciúma (SC) e foi criada no Rio Grande do Sul. Aos sete anos, diz ter aberto um livro na biblioteca da escola, no intervalo, e lido sobre o conflito árabe-israelense. Em uma nota de rodapé, descobriu o islã. “Senti alguma coisa dentro de mim. Cheguei em casa e disse que era muçulmana. Minha avó ficou brava. Minha mãe pensou que aquilo era uma brincadeira de criança e que iria passar.”

Não passou. Aos 15, Umm Abdo foi à mesquita de Brasília —ela morava então em Goiás— e pediu para ser convertida. Os responsáveis lhe deram livros sobre o islã e pediram que voltasse mais velha. Três anos depois, ela já era adulta e muçulmana.

Junto com a fé no islã, que diz ter chegado após experimentar sem sucesso outras crenças, esteve sempre para Umm Abdo a ideia de morar nos territórios palestinos. Adulta, conheceu Said a distância e se apaixonou por ele.

Em 2005, aos 20, ela cruzou a fronteira egípcia de Rafah, mudou-se para Gaza e ali casou-se com o filho de Dukhan, passando a ser parte dessa influente família.

“É uma história normal”, insiste. “É como se eu me casasse com um alemão e morasse na Alemanha. Vivemos como as demais pessoas.”

Em Gaza, porém, o normal é o extremo. O território, sufocado pelos bloqueios de Israel e do Egito, carece de água potável, de eletricidade, de gás, de medicamentos e de material de construção. Nos últimos seis anos, foi castigado por três guerras.

“Eu tenho nacionalidade italiana e poderia viver lá. Mas não é a vida que eu quero”, diz a brasileira sobre agruras de Gaza. “A libertação da Palestina só virá por meio da resistência. Por isso ficamos. O futuro de Gaza são as crianças”, diz.

Umm Abdo fala à reportagem quase imóvel no sofá, distante do repórter. Somente seu rosto é visível. Ao redor, seus filhos pequenos correm, agitados. São quatro, e ela está grávida do quinto.

A imprensa e a comunidade internacional relataram, durante a guerra em Gaza, que o Hamas usava civis como escudos humanos. Dos mais de 2.000 mortos, a maior parte não era parte do grupo. Mas Umm Abdo suspira e aponta à filha: “Quantos mísseis ela pode carregar?”

A brasileira reluta em detalhar a vida pessoal. O marido já havia pedido antes da entrevista que não falassem sobre a sua história de amor (“é muito especial para nós”). Ela afirma que “sionistas têm monopólio da mídia brasileira” e que “a situação de Gaza não vai mudar se eu aparecer no jornal”.

Mas Umm Abdo deixa escapar imagens de seu cotidiano, sentada na sala de teto baixo. Ela diz ter estudado direito e falar sete línguas —o árabe que fala fluente aprendeu sozinha, conta, e depois em provas na Universidade Islâmica de Gaza.

A história volta à nota de rodapé, no livro da biblioteca, em que a brasileira leu “que as pessoas em Gaza rezam cinco vezes por dia para Meca, jejuam no Ramadã e são ocupadas por Israel”.

Umm Abdo cresceu em uma família católica, mas nunca se sentiu como tal. “Eu tinha dúvidas. Ia à igreja, mas recebia sempre as mesmas respostas. Não é como no islã, ali tudo está claro.”

Ela também diz que, ao contrário do cristianismo, o islamismo não se transformou para se adaptar aos tempos. “A religião é a mesma desde Maomé“, afirma, referindo-se ao profeta do islã.

“No catolicismo, as mulheres não precisam mais usar vestido longo e cobrir a cabeça. Maria cobria o cabelo, por que não existe mais isso?”, pergunta. “Além disso, não há problema em a mulher ter relação sexual antes do casamento, e mesmo assim ela casa de branco.”

“Os mandamentos de Deus são os mesmos. O que era pecado continua sendo pecado. Se os homens me virem na praia andando seminua, qual vai ser o meu mistério? Todo mundo já viu!”

A reportagem lhe pergunta se tem, a exemplo do sogro, participação política em Gaza. Ela sorri. “Essa pergunta vamos deixar no ar”, diz. “Mas posso dizer que minha política é aquela que passo a meus filhos e às pessoas que moram aqui, não para quem está fora de Gaza. Não há lugar melhor no mundo para morar. Mesmo com todas as dificuldades e os massacres, sou apaixonada e vou morrer apaixonada. Se Deus quiser.”

Fonte: Folha de São Paulo

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