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Eu cobri vários eventos de Donald Trump no último ano. O comício de domingo (27), no Madison Square Garden, foi diferente.
Desde a fila o clima estava mais pesado –quase nada lembrava a quase micareta que vi em Long Island. No frio de 8°C, muita gente irritada e gritando “empurra, empurra”, com medo de não conseguir entrar.
Lá dentro, uma mulher que entrevistei, uma senhora chamada Janette, não aceitou que a minha pergunta começasse com “se Trump vencer”. “Não, não é ‘se Donald Trump vencer’. Ele vai vencer. Deixa eu ver você escrever isso”, disse irritada, apontando para o meu celular, onde eu anotava o que ela falava.
Uma outra me mandou “pesquisar melhor” quando eu disse a ela que as acusações de que o vice de Kamala, Tim Walz, abusou de alunos são falsas. Ela também me disse que os democratas querem matar “milhões de pessoas no mundo”. Quando eu perguntei o porquê, ela repetiu que eu deveria pesquisar. Depois resmungou “não sei onde essas pessoas estudam” enquanto eu me virava para ir embora.
Na arena, três jovens sentados à minha direita estavam especialmente exaltados. Quando não estavam em pé gritando coisas como “envie-os de volta” e “USA”, ficavam cutucando as pessoas da fileira da frente. Foram cenas que eu honestamente acho que não vejo desde o ensino fundamental.
Quando a imagem de Kamala Harris aparecia no telão, gritavam as coisas mais baixas –não vou repeti-las aqui. Em algum momento fiquei receosa que eles me abordassem. Não consigo lembrar de outra vez que tenha ficado tão tensa com medo que alguém percebesse que sou estrangeira.
O palco refletia a vulgaridade de muitos da plateia. O (suposto) comediante Tony Hinchcliffe chamou Porto Rico de “ilha flutuante de lixo” e disse que latinos fazem muitos filhos, emendando uma (suposta) piada sobre sexo.
Kamala foi comparada a uma prostituta pelo investidor Grant Cardone e chamada de anticristo por David Rem, um amigo de Trump. Tucker Carlson ironizou a birracialidade da democrata, disse que ela tem um QI baixo e que será inacreditável se ela ganhar na próxima semana –colocando em dúvida a lisura da eleição.
Os ataques a imigrantes ganharam outros contornos. Claro, não é segredo para ninguém que a estratégia do republicano é mobilizar sentimentos xenófobos a seu favor, só que na noite de ontem ele próprio deixou isso explícito.
Tirando toda a espuma raivosa à parte, para mim a real mensagem do comício foi que a eleição se trata de uma luta de vida ou morte para salvar os EUA de uma ocupação estrangeira. Trump disse, literalmente, que sua vitória será o início da libertação da América.
Encerrando uma semana em que a simpatia por Hitler e sua proximidade com o fascismo foi o principal tópico de discussão, não deixa de ser desafiador ele usar o principal comício de sua campanha até aqui para repetir que há um inimigo interno –descrito por ele como uma espécie de elite amorfa que controla tudo, da qual Kamala e Biden são apenas fachadas– que precisa ser derrotado.
“Amamos Trump porque ele nos libertou da obrigação de dizer mentiras. Trump tornou possível falar a verdade sobre o mundo ao nosso redor”, disse Carlson em certo momento. Num crescente de uivos e aplausos, ele seguiu, combativo: “não, vocês não são melhores do que nós. Não são mais inteligentes do que nós. Não vão mais nos intimidar para ficarmos em silêncio”.
Há uma frase que você pode encontrar tanto na boca de Trump quanto na de Kamala: essa é a eleição mais importante da história dos EUA. A uma semana da votação, me preocupa o que sofrer uma derrota, quando se acredita que algo tão primordial está em jogo, vai ensejar.
Veja aqui um vídeo de como foi o comício.
Amanhã acompanho um comício de Kamala em Washington, em que a democrata vai dar a sua versão de por que sua vitória é vital para os EUA.
O passo a passo da contestação
A eleição de 2020 foi uma lição para os EUA. Após o conturbado pleito, o Congresso revisou regras e procedimentos para dificultar uma nova tentativa de golpe. Mas a eleição de 2020 também foi uma lição para Donald Trump.
Para analistas, a democracia americana está mais bem preparada para lidar com ameaças, assim como o empresário também o está para colocá-la à prova.
Há quatro anos, Trump antecipou-se aos resultados para se declarar vencedor. Funcionários de seções eleitorais em diversos estados negaram-se a certificar a contagem de votos, um procedimento até então meramente burocrático, sob a justificativa sem provas de que havia fraude.
Confirmada a derrota 87 horas após o fechamento das urnas na Pensilvânia, recontagens foram feitas na Geórgia (duas vezes) e em Wisconsin (uma vez). Trump tentou, então, argumentar que os Legislativos estaduais poderiam selecionar uma chapa alternativa de delegados para votar no Colégio Eleitoral, desvinculados da obrigação de escolher o candidato mais votado.
Diante da recusa dos estados, a campanha do empresário recrutou ela própria delegados falsos. Como não tinham aval de nenhuma autoridade, o então vice-presidente, Mike Pence, os rejeitou, para contrariedade de Trump. O passo final foi a invasão do Capitólio, para impedir a confirmação da vitória de Joe Biden, em 6 de janeiro de 2021.
O trauma levou o Congresso a aprovar, em 2022, uma reforma da Lei de Contagem Eleitoral, promulgada em 1887, para deixar claro que o resultado das urnas em cada estado precisa ser certificado por todas as esferas, de funcionários das seções ao Legislativo federal. A mudança também facilita o acionamento da Justiça e cria caminhos mais rápidos para resolver disputas, além de enfatizar que o papel do vice-presidente é meramente cerimonial.
O primeiro teste desse novo sistema começa em 5 de novembro, mas não acaba aí. Outras datas-chave são 11 de dezembro, prazo máximo para cada estado certificar seu placar; 17 de dezembro, quando os delegados se reúnem para votar no Colégio Eleitoral; 6 de janeiro, quando o Congresso confirma o resultado do pleito; e, finalmente, 20 de janeiro –a posse do novo presidente.
Nesta reportagem, explico o passo a passo para colocar em dúvida cada etapa do pleito e justificar, no limite, uma nova eleição pelo Congresso.