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Como o Make America Great Again virou problema para Trump – 03/10/2024 – Ezra Klein

Em 2024, o Estado profundo que pode derrotar Donald Trump é o seu próprio.

Afinal, é para isso que o Projeto 2025 foi realmente concebido. O calhamaço de 900 páginas que os democratas erguem diante das câmeras é um festival de opções de propostas políticas minuciosamente detalhadas. Mas opções para quem? Não para Trump.

Mesmo o presidente mais técnico só tem capacidade de se envolver com uma pequena fração do que o Poder Executivo faz. E Trump não era o presidente mais técnico. Quando ele disse, durante o debate com Kamala Harris, que não leu e nem lerá o Projeto 2025, eu acreditei nele.

Mas o Projeto 2025 —e outros como ele, que receberam menos atenção da imprensa— é mais do que um compêndio de propostas de políticas: é um esforço para construir um estado profundo próprio de Trump. A Presidência dos Estados Unidos não é um só homem, com um copo de Coca-Cola light na mão, assistindo a Fox & Friends na TV, dando ordens.

São cerca de 4.000 cargos políticos —ou 50.000, se Trump novamente usar seus poderes para retirar as proteções do serviço público de amplas áreas do governo federal— tentando fazer o que acham que o presidente quer que façam ou o que acham que precisa ser feito. Eles definem políticas para os mais de dois milhões de servidores públicos do governo federal e escrevem regulações que o restante da sociedade precisa seguir.

Veteranos do governo Trump acreditam que esses servidores foram o maior problema deles. Eles não podiam agir com ambição ou rapidez suficiente porque estavam em guerra constante com o governo que, teoricamente, controlavam.

Parte disso refletia o estilo de liderança errático de Trump e o constante conflito entre as facções beligerantes dentro de sua Casa Branca: os republicanos tradicionais agrupados em torno de Mike Pence e Reince Priebus; os Maga (acrônimo que significa “Make America Great Again”, slogan de Trump) liderados por Steve Bannon e Stephen Miller; o establishment de política externa que falava por meio de H.R. McMaster e Nikki Haley; os corporativistas liderados por Jared Kushner e Gary Cohn.

Leia qualquer livro sobre a presidência de Trump, e ele será repleto de exemplos dos principais nomes de Trump tentando sabotar uns aos outros —e a ele próprio.

Mas parte disso refletia uma burocracia federal que resistia a Trump e às pessoas que ele nomeava. Em uma apresentação na Conferência Nacional de Conservadorismo de 2024 em Washington, Katy Talento, que supervisionava a política de saúde na presidência de Trump, descreveu os obstáculos que enfrentava.

“Há um punhado de nomeados políticos em uma agência com centenas de milhares de funcionários e talvez um ou dois desses nomeados tenham experiência suficiente para escrever regulamentos. Eles não podem buscar ajuda dos burocratas experientes mas hostis que os cercam, senão os rascunhos vazam, ou recebem conselhos ruins, ou jabutis são colocados nas regulações, ou os rascunhos sofrem atrasos e são abandonados. Isso limita drasticamente o potencial de produtividade de um governo republicano”, afirmou.

Este é o problema que grupos como o Projeto 2025 se propuseram a resolver. Por trás do livro de propostas está um banco de dados com cerca de 20 mil candidatos prontos para fazer parte do próximo governo Trump. E esse banco de dados ainda está crescendo. Há um portal online que convida os candidatos a se inscreverem para fazer parte do “Banco de Dados de Pessoal Presidencial”.

Segue dizendo que “com as recomendações das propostas conservadoras corretas e pessoal devidamente avaliado e treinado para implementá-las, recuperaremos nosso governo.” Para fazer isso, o próximo governo Trump deve primeiro limpar ou conquistar o governo federal que atualmente existe. O Projeto 2025 está obcecado com essa tarefa e muitas de suas mais de 900 páginas são dedicadas a planos e teorias sobre como isso poderia ser feito.

“O grande desafio enfrentado por um presidente conservador é a necessidade existencial do uso agressivo dos vastos poderes do Executivo para devolver o poder, incluindo o poder atualmente exercido pelo Executivo, ao povo americano”, escreve Russ Vought, ex-diretor do Escritório de Orçamento e Gestão de Trump, em um dos capítulos. A vitória exigirá a “ousadia de convencer ou forçar a burocracia a obedecer a vontade presidencial”.

Isso, eu diria, é a teoria unificadora de um segundo mandato de Trump. Expurgar ou quebrar a burocracia federal. Preenchê-la com pessoas leais. Em seguida, usar seu poder para aprovar propostas, mas também para quebrar ou conquistar as outras instituições na vida americana que tanto incomodam Trump e seus apoiadores.

“Estamos no meio da segunda Revolução Americana, que não terá derramamento de sangue se a esquerda não se opuser a ela”, disse Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation, que supervisionou o Projeto 2025, em julho.

Trump e sua campanha estão furiosos porque o Projeto 2025 tem sido pendurado como uma pedra em seu pescoço. Mas há duas razões pelas quais sua desaprovação conta pouco.

A primeira é que a campanha de Trump tratou suas propostas como um segredo que o público só pode conhecer após sua vitória. Sua página oficial é uma piada, sua plataforma é uma coleção de aforismos em letras maiúsculas.

O próximo governo Trump fará muito mais do que a campanha de Trump está descrevendo, e o Projeto 2025, que foi produzido com a contribuição de mais de cem organizações conservadoras que se veem como parte da coalizão Maga, preencheu o vazio que Trump mesmo deixou. Ele não nos disse o que iria fazer, então o Projeto 2025 disse.

A segunda razão é que a campanha de Trump de 2024 difere de sua campanha de 2016 em uma maneira fundamental. Em 2016, Trump concorreu como o destruidor da coalizão republicana existente. Ele venceu humilhando os políticos que haviam exercido o poder antes dele, mas não tentou substituí-los durante essa campanha. E assim, Trump presidiu uma espécie de governo de coalizão incômodo com o Partido Republicano de Paul Ryan e Mitch McConnell.

Seus principais projetos de política doméstica refletiram essa coalizão: a revogação do Obamacare foi o que uniu os republicanos do Congresso em 2016, então foi isso que o governo Trump tentou em 2017. Cortar impostos para empresas era o que motivava Ryan a sair da cama de manhã, então foi isso que o governo Trump fez em seguida.

Mas agora Trump é o líder da coalizão republicana. Ele não pode se divorciar, não de forma crível, dos grupos que trabalham dia e noite para garantir sua vitória e ocupar sua Presidência. Não há um centro de poder alternativo que a mídia ou o público possam imaginar que fará o trabalho de governar, trabalho esse que tanto entedia Trump.

Mas Trump não tem temperamento adequado para o trabalho de gerenciar uma coalizão e não escolheu um conselheiro ideológico confiável para fazer isso por ele. Ele é um governante hesitante e distraído, e o resultado são dezenas de grupos competindo pelo seu apoio e incertos sobre como conquistá-lo.

A Heritage Foundation era um desses grupos, e o Projeto 2025 foi seu esforço principal. Em 2021, Roberts assumiu a Heritage e a reestruturou em uma organização dedicada a “institucionalizar o trumpismo”. Ele buscou centralidade tanto em escala quanto em publicidade: o Projeto 2025 foi um empreendimento vasto, e Roberts o promoveu incansavelmente.

Isso agora é visto como uma loucura, mas é fácil seguir a lógica original: a Heritage tem experiência em elaborar documentos de governo para candidatos insurgentes, remontando ao Mandato para a Liderança de Ronald Reagan, e Trump frequentemente recompensa a lealdade daqueles que ele percebe que estão lutando por ele em público. Mas Roberts foi longe demais.

“O problema, que eu sempre suspeitei, era que poucos planos sobrevivem ao contato com Donald Trump”, disse Matthew Continetti, autor de “The Right: The Hundred-Year War for American Conservatism”. “Ele sempre quer manter a máxima flexibilidade para melhorar sua posição a qualquer momento. Então ele não iria simplesmente virar e dizer que o Projeto 2025 é exatamente o que será seu programa, e que é exatamente o que ele planeja ter em seu governo.”

Mas se Trump vencer, ele precisará de planos e de pessoas. E, assim, os problemas que o Projeto 2025 causou para Trump na campanha também atormentariam sua presidência.

A coalizão Maga, especialmente seus representantes eleitos e funcionários em Washington, cresceu para além de Trump. Ela tem mais opiniões sobre mais questões do que ele. Ela absorveu ideologias mais específicas e incomuns do que ele. Ela é mais hostil ao aborto do que ele, ou do que ele quer parecer ser. Ela é mais comprometida com a desregulamentação do seguro de saúde do que ele, ou do que ele quer parecer ser.

Há uma grande lacuna entre o líder Maga que dormiu com uma atriz pornô e as facções no movimento Maga que querem proibir a pornografia, como Roberts propôs na primeira página do Projeto 2025.

O trumpismo é o que Trump diz que é, mas o Maga é o que seu movimento se tornará. Por isso J.D. Vance tem sido um problema político para a campanha de Trump. Vance representa a evolução do movimento Maga —esotericamente ideológico, profundamente ressentido, terrívelmente online— que não foi amenizado pelos instintos teatrais de Trump e pelos ventos da opinião pública.

É significativo que seja Vance, e não Trump, quem escreveu um prefácio elogioso para o próximo livro de Roberts. Trump é onde o Maga começou, mas Vance e Roberts representam para onde ele está indo.

O problema de Trump na eleição de 2024 é que ele não pode mais se candidatar como se fosse um homem sozinho. Todos sabiam que Pence não representava o trumpismo. Mas Trump escolheu Vance para ser o herdeiro do movimento Maga. Um governo Trump estaria cheio de pessoas como Vance perseguindo os objetivos nos quais acreditam.

Na apresentação de Katy Talento que mencionei, ela descreve o governo Biden como “um leviatã federal que está matando nossos bebês” e argumenta que “cada secretário de gabinete que entra em um governo novo e, espera-se, republicano, terá uma agenda pró-vida que eles devem promulgar”. Esta não é a mensagem de Trump para a eleição, mas seria a realidade de seu governo.

Um novo governo Trump estaria cheio de pessoas buscando objetivos como esse em todos os níveis, e com razão. É isso que coalizões fazem quando ganham eleições. Mas é por isso que as declarações de Trump soam tão falsas. Ele está negando uma realidade de seu segundo mandato que todos podem ver com clareza.

O Projeto 2025 não é um guia perfeito para esse segundo mandato, mas é a coisa mais próxima que temos. Era tudo muito mais fácil quando o Estado profundo era algo sobre o qual Trump podia reclamar, em vez de algo que ele tinha que gerenciar.

Fonte: Folha de São Paulo

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