Sem o mesmo escrutínio de mídia dedicado à sua campanha contra os terroristas do Hamas e os extremistas do Hezbollah, o governo de Israel aumentou brutalmente a pressão sobre os quase 3 milhões de palestinos que moram na Cisjordânia.
Desde que o Hamas atacou o Estado judeu, há quase um ano, foram cerca de 700 mortos e 5.800 prisões, além da militarização dos agressivos colonos que ocupam áreas de forma ilegal, segundo o acertado no acordo que promoveu o reconhecimento mútuo da ANP (Autoridade Nacional Palestina) e de Israel, em 1994.
A Folha visitou a região no sábado (28) e no domingo (29), conversando com moradores, líderes comunitários e políticos. O cenário, na perspectiva palestina, é desolador.
“O que está acontecendo aqui já é a guerra, não a próxima etapa depois de Gaza e do Líbano“, disse Qasem Awad, o diretor-geral de Direitos Humanos e Sociedade Civil da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), a mãe da ANP.
Ele cita os objetivos de Binyamin Netanyahu, de resto públicos desde que o premiê prometeu anexar a região do vale do rio Jordão, em 2019, independente de seu status sob o acordo de paz com os palestinos.
“Primeiro, tornar a vida insuportável para os palestinos. Segundo, armar cada vez mais colonos judeus. Terceiro, desmembrar as cidades e vilas palestinas e torná-las ilhas isoladas”, afirma o diretor.
Uma visita ao campo de refugiados de Jenin, instalado em 1953 e desde então um ponto focal de atrito entre palestinos e as forças de Israel, ilustra o primeiro item. De campo, o local só guarda o nome: é um bairro pobre não muito diferente das periferias brasileiras.
Uma coisa chama a atenção de cara: muitas ruas foram arrebentadas por escavadeiras militares israelenses, inclusive a que dá acesso ao único hospital da região, numa incursão na semana passada.
“Eles dizem que estão atrás de bombas, mas por que alguém colocaria bombas onde nossas crianças passam?”, diz o morador Ahmad Yunis, mostrando também o dano à mesquita Al-Ansari, objeto de um ataque aéreo em novembro. Casas, muros, os danos estão todos os cantos: até o arco que marcava a entrada do lugar virou escombro há duas semanas.
Há também o impacto econômico. Yunis trabalha como voluntário consertando o que pode na região, mas seu emprego como pedreiro perto de Jerusalém desapareceu com a guerra —as restrições de movimento entre os lados tornaram-se draconianas. A ANP estima em 50% o desemprego hoje na Cisjordânia.
O programa tem sido levado à frente pelo polêmico ministro Itamar Ben-Gvir (Segurança Nacional), o ícone do extremismo religioso no gabinete que sustenta Netanyahu. A reportagem não conseguiu contatá-lo.
“Para Israel, conquistar a Cisjordânia é uma questão existencial. Isso era clandestino, agora é política oficial”, diz o chefe político do campo de Jenin, Muhammad Dahlan. “Eles afirmam estar atrás de células terroristas, mas nós não oferecemos perigo como população a eles”, afirma.
Este é um ponto contencioso. Sem microfones ligados, outros membros da gestão local admitem que terroristas de grupos como o Jihad Islâmico buscam refúgio no cipoal urbano de Jenin, ainda que não controlem a região da forma com que o Hamas governava Gaza.
A conta, seja de culpados ou inocentes, vem em sangue: nesta terça (1º), os palestinos contaram quatro mortos em conflito com soldados em Nablus.
Quando falou com a reportagem, Awad somava 715 mortos no primeiro ano da guerra. O número começou a subir com a incursão iniciada enquanto a Folha visitava Jenin: em vez do aplicativo de alertas de ataques aéreos onipresente em Israel, ali o que funciona é uma figurinha no WhatsApp mostrando um sinal de trânsito com exclamação no meio.
Um dos mortos foi Ahmad Yunis Kandir, de 83 anos. Em 3 de agosto, ele foi levado por soldados israelenses com cerca de 50 pessoas para uma casa, durante uma das ações semanais desde que a guerra estourou.
“Depois de quatro dias, ele e outras 15 pessoas tentaram fugir, não havia água, nada. Meu pai morreu com nove tiros disparados por um franco-atirador”, disse Arafat Kandir, filho da vítima e secretário-geral do movimento majoritário palestino Fatah na cidade de Jenin.
Ele mostra um vídeo de celular em que uma van blindada de Israel passa por cima da perna do idoso, já morto no solo. Arafat, até por sua posição, parece uma figura visada, tendo marcado o encontro em uma garagem com sofás e narguilés, cercado por homens com clara atitude de seguranças.
A reportagem questionou a ele e às outras autoridades se o cenário sugere uma terceira intifada, uma continuação da revolta popular contra os israelenses que teve edições em 1987 e 2000. O ceticismo é grande. “Não temos mais esperanças”, afirmou, dizendo que a guerra contra o Hezbollah tenderia a piorar a situação.
Na estrada 60, que corta a Cisjordânia e a liga a Israel, a questão da reconfiguração prometida por Netanyahu é clara. Toda a região é dividida nas zonas A (gestão palestina, proibido entrar israelense), B (gestão e trânsito compartilhados) e C (controle de Israel).
Logo após entrar na zona A rumo a Qabatiyah, ao sul de Jenin, está um enorme muro de um assentamento ilegal judaico. A segurança no posto de controle foi terceirizada a militares que moram no local, que foram transformados numa milícia por Ben-Gvir: ele distribuiu 35 mil fuzis na área depois do 7 de Outubro.
Ao longo da estrada, os assentamentos pipocam, geralmente no alto de morros —permitindo uma posição tática favorável. As vias em torno deles são de boa qualidade, em oposição ao asfalto esburacado palestino. E há os conflitos, muitas vezes fatais.
A ONU, que é vista em Israel como uma agência de promoção da causa palestina, contou 800 ataques, de assassinatos ao corte ou incêndio dos olivais, uma das únicas fontes de renda da terra. Em Qabatiyah, as pedreiras da famosa pedra calcária cor de creme da região, estão em sua maioria fechadas por não ter como vender para Israel.
A escalada se vê também nas prisões. De 5.200 detidos no dia 6 de outubro de 2023, hoje há 11 mil palestinos na cadeia. “Desses, 4.000 estão presos de forma administrativa, sem nenhuma acusação judicial formal”, diz o chefe da Comissão de Assuntos de Detentos da Palestina, Qaddura Fares.
Ele avalia que apenas 1.500 de todos os presos de fato fizeram algo que Israel considera crime ou terrorismo, o que na visão palestina é resistência. “Há até 2.000 acusados de incitar crime por repostar vídeos em rede social”, afirma.
Fares relata que a guerra tirou as rédeas que Netanyahu bem ou mal impunha a Ben-Gvir. “Antes, havíamos conseguido na Suprema Corte um programa para a aumentar o espaço por prisioneiro de 1,8 m2 para os corretos 8 m2. Tudo isso parou. Há espancamentos, doenças, falta de remédios.”
Um problema central na crise atual foi o esvaziamento do governo da ANP. “Não temos mais parceria com Israel”, diz Fares. Nas ruas, o presidente Mahmoud Abbas, 88, é visto como o chefe de uma cleptocracia.
Com efeito, a mais recente pesquisa do respeitado Centro Palestino de Políticas e Pesquisas de Opinião mostrou que seu partido, o Fatah, tem 18% de apoio na Cisjordânia, ante 37% do Hamas.
O centro ouviu no começo de setembro 1.200 pessoas em Gaza e na Cisjordânia, mostrando um apoio maior ao ataque do Hamas entre os palestinos que não moram na região governada pelo grupo: 64%, ante 39% dos gazenses.
O levantamento mostrou o que se ouve em qualquer conversa na região: a brutalidade do Hamas é considerada uma invenção de propaganda para 90% dos ouvidos. Awad é prova disso, instruindo mais uma linha de desconfiança mútua na cada vez mais intransponível disputa israelo-palestina.
“A OLP é contra a morte de civis inocentes. Mas não há nenhuma prova de que houve estupros, e bebês morreram pelos ataques aéreos de Israel no dia”, diz o dirigente, ignorando evidências —como as registradas pelos próprios terroristas em câmeras corporais colhidas por Israel, condensadas em um vídeo de 47 minutos.