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‘Não sei de quem é minha roupa’, diz deslocada em Israel – 29/09/2024 – Mundo

No dia 6 de outubro de 2023, Inbal Levy era só sorrisos. Ela havia acabado de voltar de um mochilão de dois meses em Portugal, definido por ela como um luxo aos seus 62 anos e salário inconstante como cuidadora de idosos e de crianças com autismo em Bar’am, kibutz com 670 moradores na porção norte da Galileia, a 300 metros do Líbano.

Um dia depois, o ataque do Hamas em torno da Faixa de Gaza levou o Hezbollah libanês a começar uma campanha de atrito na fronteira norte de Israel, que vive um momento agudo com a morte do líder do grupo em um ataque israelense na sexta (27). Desde então, Inbal não tem casa, como outras 60 mil pessoas. Ela contou sua história na quarta (25), no hotel da praia de Nachsholim em que está abrigada, ainda no norte do país.

Eu acordei no dia 7 de outubro, acho que umas 7h, com as sirenes. Estávamos acostumados a ter isso de vez em quando. Tinha voltado de Portugal no sábado [dia 6], porque minha nora estava para ter sua bebê. Ela já tinha um filho de 2 anos e meio e precisava da minha ajuda.

Por volta das 10h, a administração do kibutz nos avisou que tínhamos de ir embora com o que pudéssemos levar em duas horas. Imagine! Sua vida toda em duas horas. Coloquei o que tinha, diplomas de cursos, remédios, duas calças e duas camisetas, numa bolsa.

Nunca pensei que não fosse voltar para casa. Deixei minha nora na casa dos pais delas, em Kiryat Motzkin, perto de Haifa. Meu filho, que trabalha numa empresa de games, apareceu e fomos todos para o hotel que o governo designou para a gente em Tiberíades [junto ao mar da Galileia].

Eram mil pessoas no lugar. Eu entrei em pânico e, para piorar, caí e quebrei a perna esquerda. Como já tenho um problema na direita, fiquei 100% deficiente. Pedi para sair de lá, não tinha como viver dividindo banheiro, sem uma cozinha, e ir para um lugar com acessibilidade.

O governo não ajudou. Minha irmã achou um hotel em Tel Aviv, onde fiquei até tirar o gesso, depois de três meses. Eu sempre ajudei minha família, e agora dependo dela. É uma lição, aprender a receber. Aqui, ou você fica nos hotéis pagos pelo governo ou recebe uma ajuda mensal [equivalente a R$ 8.800]. No hotel, há refeições gratuitas, mas você não toma um café sem pagar.

Meu trabalho é necessário nesses dias, cuido de idosos e de crianças com autismo, mas não consigo emprego, até porque só me locomovo com esse carrinho elétrico que estou usando. Eu estava voltando a Israel para continuar meu curso de psicologia, um sonho que vivi, que eu trabalhei dez anos para poder pagar.

Os meus colegas de faculdade arrumaram um lugar num dormitório. Não dava. Mudei então para Netanya, mas o lugar era medonho, tinha baratas do tamanho de elefantes. Era mais um recinto de eventos, e estava sempre cheio de gente barulhenta e fumando maconha. Eu já tinha melhorado o suficiente, então insisti para achar um novo lugar para morar.

A burocracia é incrível. Eu tinha direito, pela minha outra perna ruim, a ajuda especial. Mas ninguém na agência do governo me perguntou nada. Fui atrás, consegui uma carta do Ministério da Saúde e, enfim, achei esse paraíso onde estamos em Nachsholim. Tudo é bom aqui, meu quarto é espaçoso e eu improvisei uma cozinha com uma pequena geladeira nele.

O problema é que o governo esqueceu da gente, do norte. Todo fim de mês tem uma reavaliação para ver se ficamos ou não onde estamos. Minhas economias acabaram, meu filho me ajuda como pode. O filho mais velho dele dorme todo encolhido, com medo das sirenes na casa que alugaram. A bebê, essa nunca soube o que é ter um lar.

Duas vezes por semana, pego o carro e vou até eles para ajudar. Estou fazendo trabalho voluntário na cidade, ajudando as crianças com autismo na escola local e costurando roupas e tecidos para os soldados daqui.

Acho tudo isso terrível. Nós éramos vizinhos dos libaneses. Eu via da plantação do meu pai as bandeiras do Hezbollah. Agora, tudo desmoronou. Meu filho mais novo foi embora para a África do Sul, de onde é a namorada dele. Estou feliz por ele, que não vai ter de lutar, com 34 anos. Eu queria que o meu mais velho, de 36, também saísse do país, mas ele tem mulher e dois filhos.

Se eu achasse que temos um objetivo claro nesta guerra, que não seja só manter o Bibi [apelido do premiê Binyamin Netanyahu] no poder, não teria problema em até ir lutar. Mas como posso pedir que o filho da minha vizinha morra por minha causa, para que eu possa voltar para a minha casa?

Eu não sou mais importante que os outros 60 mil que deixaram suas casas. Não sei como esta situação vai acabar. Na verdade, eu nem sei de quem é a roupa que estou usando, que foi doada.

Fonte: Folha de São Paulo

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