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‘EUA empurram mulheres para funções que são do Estado’ – 27/09/2024 – Mundo

Os Estados Unidos são o único país rico do mundo que não prevê por lei o direito a licença-maternidade ou paternidade remuneradas. Em uma lista das 38 nações que compõem a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os americanos estão em penúltimo lugar no ranking de gastos públicos direcionados a famílias —apenas 0,6% do PIB.

A precariedade da rede de amparo familiar nos EUA não é acidental, mas parte de um modelo de sociedade que a socióloga Jessica Calarco chama de “sociedade do faça você mesmo”. Sob o mantra de que cada um deve se virar sozinho, o Estado americano se exime de investir em uma infraestrutura social, empurrando para as mulheres o papel de preencher essa lacuna.

Esse é o argumento central do livro “Holding It Together: How women became America’s social safety net (Mantendo Tudo Junto: como as mulheres se tornaram a rede de segurança social dos Estados Unidos, em tradução livre)”, lançado pela professora da Universidade de Wisconsin-Madison em junho.

A centralidade que debates sobre modelos de família ganhou na eleição americana deste ano resulta em grande parte do esgarçamento desse modelo, à medida que cada vez mais mulheres rejeitam esse papel e competem com homens no mercado de trabalho, afirma Calarco à Folha.

J.D. Vance, vice na chapa de Donald Trump, representa uma reação a essa realidade: mais que uma valorização da maternidade, seus ataques a “loucas dos gatos sem filhos” são uma forma de pressionar mulheres a voltarem ao papel de cuidadoras, diz a socióloga.

Além dos ataques a ‘loucas dos gatos’, J.D. Vance já criticou o divórcio, o direito ao aborto e defendeu que pessoas com filhos tenham mais peso político. O que está por trás desse tipo de pensamento?

Ao limitarmos as opções das mulheres em termos de quando e como e se elas se tornam mães, e o apoio que elas recebem de programas de bem-estar social, podemos empurrá-las para situações que tornam muito mais fácil manter a sociedade “faça você mesmo” que temos nos EUA.

Outros países investiram em políticas de bem-estar social, não apenas programas de assistência, mas também creches acessíveis, licença familiar remunerada, sistema universal de saúde. Esses programas servem para ajudar as pessoas a atender às suas necessidades de cuidado. Mas o que fizemos aqui nos EUA foi dizer às pessoas que elas devem ser capazes de cuidar de si mesmas. O problema com esse tipo de modelo é que na prática ele não funciona porque muitas pessoas, como crianças e idosos, não têm como fazer isso.

Uma das melhores maneiras de empurrar as mulheres para esse trabalho de cuidado é colocá-las em posições em que são responsáveis por outras pessoas. Uma vez que você se torna mãe, isso limita suas escolhas. Na ausência de uma rede de bem-estar social forte, você precisa aceitar qualquer emprego que apareça.

O estigma e a vergonha em torno das mulheres que não são mães também têm um papel nisso, ao dizer a elas “esta é a pessoa que você deve ser”, e normalizar a ideia de sacrifício. Isso faz parecer que esse modelo de sociedade está funcionando muito bem, quando na verdade está prejudicando a todos.

É assim que conseguimos não ter uma infraestrutura de segurança social e manter impostos baixos, especialmente para os mais ricos e as grandes empresas. As mulheres preenchem as lacunas na infraestrutura, na economia e no cuidado que nossas famílias e comunidades precisam.

O que explica o apelo de Donald Trump e Vance junto ao eleitorado jovem masculino?

Infelizmente, o que os dados sugerem é que há um movimento crescente em direção a atitudes mais sexistas e misóginas. Isso se explica em parte pela mídia, por pessoas como Andrew Tate e Joe Rogan, influenciadores que estão promovendo a ideia de que mulheres pertencem ao lar e que homens são mais adequados para terem papeis na sociedade.

Acho que o apelo dessa mensagem deriva em parte da precariedade da sociedade “faça você mesmo”. Se todo mundo deve cuidar de si mesmo, e os homens têm um maior potencial de ganho, a melhor maneira de eles progredirem é dedicar o máximo de sua energia e tempo trabalhando por dinheiro. Mulheres ficam nos bastidores se dedicando ao trabalho de cuidado que de outra forma recairia sobre eles.

Isso é mais pronunciado entre aqueles que ainda não conseguiram se estabelecer profissionalmente. Eles se sentem ameaçados pelo fato de que as mulheres agora estão indo para a faculdade em taxas mais altas, numa era de mais atenção à diversidade, equidade e inclusão. A sensação de que sua posição está ameaçada faz com que pareça mais aceitável explorar ou menosprezar as pessoas ao seu redor se isso lhes der a chance de progredir.

Mas na minha pesquisa eu observei que homens não querem se ver como vilões, não querem se ver como sexistas. E então o que eles fazem é abraçar, ironicamente, mensagens sexistas, que dizem que as mulheres são naturalmente mais adequadas para o cuidado, que é o dever biológico das mulheres terem filhos, ou que as mulheres são mais felizes assim.

Se Trump for eleito, você acha que ele realmente conseguiria implementar um programa conservador radical como esse? A oposição na sociedade seria enorme, não?

Infelizmente, a forma como nosso sistema político funciona não é necessariamente segundo a preferência da maioria. Existem muitos lugares no país, incluindo o Wisconsin, onde estou, em que os mapas eleitorais favorecem os republicanos e os políticos eleitos não necessariamente refletem o que pensa a população.

Se Trump for eleito e tivermos um Congresso dividido, dada a formação atual da Suprema Corte, isso poderia ao menos facilitar a implementação dessas leis.

Há também o papel que os estados podem desempenhar de forma independente. Mesmo que Kamala Harris seja presidente, se tivermos uma Câmara e um Senado de maioria republicana, isso significa que podemos não conseguir reverter algumas das coisas que estão acontecendo no nível estadual.


RAIO-X | Jessica Calarco

Doutora em sociologia pela Universidade da Pensilvânia, Jessica Calarco é professora da Universidade de Wisconsin-Madison. É autora dos livros “Holding it Together: How Women Became America’s Social Safety Net” (2024) e “Negotiating Opportunities: How the Middle Class Secures Advantages in School” (2018), entre outros.

Fonte: Folha de São Paulo

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