As explosões recentes de pagers e walkie-talkies no Líbano, em ataques atribuídos a Israel, escancaram o abismo de uma guerra que parecia buscar refúgio na simplicidade e acabou criando uma nova forma de pesadelo. Esse pensamento me atravessou como um disparo silencioso, ecoando o desespero moderno em que a tecnologia já não é apenas um avanço, mas uma armadilha que se refaz na simplicidade mais cruel.
Pensemos juntos: retroceder para uma tecnologia mais arcaica, menos rastreável, como fez o Hezbollah, poderia representar uma tentativa de reencontrar uma certa segurança, um refúgio? Talvez. Mas, ao que tudo indica, não há volta possível quando o poder encontra meios de manipular até os aparatos mais rudimentares.
Há aqui uma ironia letal. O pager, aquele pequeno objeto que emitia bipes ansiosos nos anos 90, transformou-se numa bomba nas mãos de inocentes, como aconteceu com a pequena Fatima Abdullah, no Líbano. Até podemos querer acreditar que uma tecnologia mais simples nos protege, mas isso não passa de uma ilusão.
O retrocesso tecnológico, nesse caso, é como um retorno ao analógico que acaba resultando em um pesadelo digital, disfarçado de nostalgia. Essa a cruel realidade do poder: ele é capaz de transformar até as tecnologias do passado em armadilhas para o presente.
Aí reside a questão central: regredir tecnologicamente é também regredir civilizacionalmente? Se a tecnologia define, em certa medida, o avanço da sociedade, o que significa retornar a um tempo anterior? A resposta que se coloca, depois de observar episódios como esse, é que não há inocência no retrocesso. Ao tentar escapar da sofisticação dos drones e algoritmos, o Hezbollah recorreu a dispositivos arcaicos, julgados mais seguros. Mas essa tentativa de fuga da modernidade colidiu com a realidade nua e crua: até o que é obsoleto pode ser transformado em arma.
Mas o que nos pode intrigar mais é o impacto que esse retorno ao arcaico pode ter em outras esferas. Se começarmos a enxergar o retrocesso tecnológico como uma alternativa de segurança, o que mais poderíamos desconstruir?
Na educação, por exemplo, poderíamos imaginar um retorno às lousas e ao giz, sob a crença de que isso nos protegeria das manipulações digitais. Mas, e se, tal como os pagers, essas ferramentas também se tornarem vulneráveis de outras maneiras? Será que o retorno ao simples é a resposta ou estamos apenas nos enganando ao pensar que o passado era mais seguro?
Na saúde, a digitalização tem sido fundamental para salvar vidas. Mas, com o medo crescente de ataques cibernéticos, poderíamos começar a voltar a métodos mais antigos, desprezando a precisão que as novas tecnologias oferecem.
Chegamos à conclusão inquietante: a regressão tecnológica, como no caso do Líbano, é uma miragem perigosa. Não há retorno para um tempo mais simples. Essa ideia de que o antigo pode ser mais seguro carrega um risco profundo: o de inaugurar uma nova era de descanso ilusório, onde, ingenuamente, buscaríamos refúgio em ferramentas arcaicas.
Esse movimento teria, sim, potencial para gerar uma descrença crescente na tecnologia moderna, criando brechas para retrocessos em vários setores e abrindo caminho para novos modos de controle e manipulação.
E o que restaria, então? Talvez uma falsa sensação de segurança, um conforto ilusório no retorno a ferramentas obsoletas, enquanto os verdadeiros mecanismos de poder permanecem intocados.
Não nos enganemos: não é a tecnologia que define nossa civilização, mas o modo como o poder a utiliza. A tecnologia é um espelho —ela reflete os desejos, as ambições e, acima de tudo, o controle daqueles que a dominam.
O perigo real não está no avanço tecnológico, mas na nossa disposição em romantizar o passado como se fosse a chave para o futuro. Abraçar o retrocesso é como caminhar de olhos vendados para a mesma armadilha, apenas de outra forma.
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