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Kamala pode protagonizar liderança única no cenário global – 10/09/2024 – Ian Bremmer

Após a desistência do presidente Joe Biden da corrida presidencial de 2024 e a ascensão da vice-presidente Kamala Harris ao cargo de candidata democrata, surge uma questão crucial: como a política externa de Kamala se distanciaria das direções de Biden?

Biden chegou ao cargo como o presidente mais experiente em política externa de nossa geração. Quando senador, foi membro por anos do Comitê de Relações Exteriores do Senado, tendo desempenhado um papel importante nos debates sobre segurança nacional durante décadas. Como vice-presidente, liderou as principais iniciativas diplomáticas do governo Obama. O currículo de Kamala antes da Casa Branca —promotora de carreira, procuradora-geral do estado e senadora de primeiro mandato— era decididamente escasso em relação à política externa.

Entretanto, os quatro anos como vice-presidente lhe proporcionaram um curso intensivo em relações internacionais que poucos democratas ou republicanos podem igualar. Ela recebeu o resumo diário do presidente todas as manhãs, participou da maioria das reuniões de Biden com chefes de Estado visitantes e esteve presente no gabinete de crise quando decisões críticas de segurança nacional foram tomadas. Também viajou para mais de 20 países, reuniu-se com mais de 150 líderes estrangeiros e liderou muitas delegações importantes, incluindo as três últimas para a Conferência de Segurança de Munique.

Durante a pandemia, a retirada do Afeganistão, a invasão da Ucrânia pela Rússia, a intensificação da competição entre grandes potências com a China, a guerra no Oriente Médio e várias crises menores fizeram os líderes dos aliados e parceiros dos EUA passarem a vê-la como uma mão firme, capaz e respeitada. Talvez não tanto quanto Biden, que eles conhecem há décadas e, em muitos casos, a quem se afeiçoaram, mas certamente mais do que o ex-presidente Donald Trump.

Mas como sua visão de mundo e, por extensão, suas preferências políticas se comparam às de Biden? Há muita sobreposição, mas também uma distância significativa entre eles.

Biden, 81, atingiu a maioridade durante o auge da Guerra Fria, e sua visão de mundo reflete isso. Ele acredita firmemente no “excepcionalismo americano” e vê as relações internacionais em termos de preto e branco, como uma luta entre democracias e autocracias em que os Estados Unidos são sempre uma força do bem. Biden também acredita na teoria do “grande homem” da política, segundo a qual estadistas como ele podem alterar o curso da história por meio da construção de relacionamentos pessoais e da pura força de vontade.

Por outro lado, Kamala, 59, cresceu em um mundo pós-Guerra Fria em que o maior desafio à hegemonia americana era o fracasso em defender seus ideais no país e no exterior. Sua inclinação como promotora é julgar os países por sua adesão ao Estado de Direito e às normas internacionais, e não por seu sistema político ou líderes. Ela considera a estrutura “democracias versus autocracias” de Biden redutora e hipócrita, reconhecendo a necessidade (e a realidade) do envolvimento dos EUA com nações não democráticas, bem como as deficiências democráticas dos próprios EUA.

Embora concorde com Biden que os EUA são, em geral, uma força para o bem, ela desconfia de consequências não intencionais e favorece abordagens institucionalistas e multilaterais em vez de intervenções unilaterais. Kamala acredita que a maneira mais eficaz de os EUA exercerem o poder em um mundo mais contestado e multipolar —no qual ainda são a hegemonia global, mas não têm a capacidade, a vontade e a legitimidade para ditar os resultados da maneira que faziam antes— é liderar pelo exemplo.

Essas visões de mundo contrastantes se manifestam de forma diferente nas áreas políticas.

Em relação à China, a continuidade é a ordem do dia, como o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, garantiu explicitamente ao líder chinês, Xi Jinping, em uma rara reunião. Biden e Kamala estão totalmente alinhados no engajamento com Pequim sempre que a cooperação for possível, enquanto competem vigorosamente, mas em estreita coordenação com os aliados, em questões relacionadas à segurança nacional. Qualquer diferença de política entre eles provavelmente será apenas uma questão de ênfase ou tática.

Como vice-presidente, por exemplo, Kamala despendeu esforços consideráveis para fortalecer as relações dos EUA no Indo-Pacífico, viajando cinco vezes para a Ásia e se reunindo regularmente com o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos Jr. Seu governo priorizaria a construção de alianças em vez de medidas unilaterais (como tarifas, controles de exportação e sanções), intensificando o “pivô para a Ásia” além das abordagens de Biden e, certamente, de Trump.

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia é uma história diferente. Kamala e Biden se alinham no apoio a Kiev, mas suas motivações são diferentes. Enquanto ela vê o conflito em termos legais, enfatizando a violação da soberania ucraniana por parte da Rússia, Biden o vê por meio de uma lente moral, apresentando-o como uma luta entre democracia e autocracia. Essa diferença subjacente de perspectiva pode levar à divergência de políticas em circunstâncias variáveis. Embora Kamala aceitasse um acordo bilateral de cessar-fogo, seria menos provável que Biden —cujo relacionamento pessoal com o presidente ucraniano Volodimir Zelenski é, na melhor das hipóteses, morno— pressionasse a Ucrânia a entrar em negociações indesejadas, especialmente enquanto o território ucraniano permanecer sob ocupação ilegal.

A questão Israel-Palestina marca sua divisão mais significativa em termos de política externa. Kamala é mais sensível às supostas violações israelenses da lei internacional em Gaza e na Cisjordânia cometidas com a cumplicidade dos EUA. Em geral, também apoia mais a reivindicação do Estado palestino do que Biden, que nominalmente é a favor de uma solução de dois Estados, mas tem sido muito deferente com o primeiro-ministro israelense de extrema-direita, Binyamin Netanyahu.

Embora Kamala continuasse a reconhecer Israel como o parceiro de segurança regional mais importante dos EUA garantisse sua capacidade de se defender, ela exerceria mais pressão sobre o governo israelense para que respeitasse o Estado de Direito. Esse estreitamento do “relacionamento especial” representaria uma ruptura com o passado, mas alinharia a política dos EUA mais estreitamente com as posições da maioria dos aliados.

À medida que a eleição de 5 de novembro se aproxima, o potencial de Kamala para moldar os assuntos globais nos próximos 4 a 8 anos se torna cada vez mais significativo. Embora muitas vezes esteja alinhada com Biden, sua visão de mundo única promete uma liderança distinta no cenário internacional. À medida que navegamos em um cenário global cada vez mais complexo, entender como a política externa dos EUA pode mudar em um governo de Kamala não é apenas importante —é imperativo.


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Fonte: Folha de São Paulo

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