Quando caíram as primeiras bombas na Faixa de Gaza, a brasileira Umm Abdo, 41, conta que pensou consigo que aquela seria uma guerra rápida. Um ano depois, porém, os ataques de Israel ainda não cessaram. Agora, ela diz passar os dias caminhando sobre escombros, esperando —já nem sabe o quê.
Umm Abdo está entre os 11 brasileiros que, apesar da tragédia, permanecem em Gaza. O grupo é composto por ela, seus sete filhos e uma outra família, que evita contato com a imprensa. No início do conflito, o Itamaraty retirou do território palestino 83 brasileiros e parentes próximos.
O caso de Umm Abdo é bastante singular. Ela foi casada por quase 20 anos com Said Dukhan. Seu sogro era Abd Al-Fattah Dukhan, um dos fundadores do Hamas, facção responsável pelos atentados de 7 de Outubro.
Por isso, acabou convivendo com membros do grupo terrorista, ao qual culpa pelo que está vivendo. “Não posso apoiar aqueles que colocaram os palestinos nesta situação. Gostaria de saber o que o Hamas ganhou com isso, porque estamos doentes, com fome e com frio.”
Ela se separou no ano passado, acusando Said de violência doméstica. Com o divórcio, perdeu a guarda dos filhos. Diz que não sai de Gaza sem eles sob nenhuma hipótese. Vive, assim, sob duas ameaças: de Israel e também do Hamas, do qual teme vingança.
Por essa razão, ela pede à reportagem que não divulgue seu nome verdadeiro. “Umm Abdo” significa, em árabe, “a mãe do Abdo”. É comum usar esse tipo de apelido na cultura local.
Umm Abdo nasceu em Santa Catarina e cresceu no Rio Grande do Sul. Converteu-se ao islã em Brasília e se mudou para Gaza em 2005, aos 22 anos, para se casar. Afirma que não sabia que Said integrava o Hamas.
Nessas duas décadas, ela testemunhou momentos-chave da história do território palestino. Em 2007, o Hamas tomou o poder. Em seguida, Israel impôs um cerco terrestre, aéreo e marítimo, sufocando Gaza. Houve diversas guerras desde então. Foi logo após o conflito de 2014, inclusive, que ela conversou com a Folha pela primeira vez, em sua casa.
Umm Abdo afirma que nada, porém, se compara ao que está vivendo hoje. Diz que um de seus principais temores é que ela ou os filhos adoeçam em meio à escassez de medicamentos. “Não há analgésicos nem antibióticos aqui”, afirma. “Uma só ferida vira milhares de feridas.”
Outra dificuldade é financeira. Umm Abdo é uma mulher divorciada em um território conservador e empobrecido. Há poucas oportunidades. Diz que trabalhou como tradutora e recebeu auxílio do governo brasileiro. Foram dois pagamentos, somando cerca de R$ 2.000.
Não é o suficiente, afirma, em meio à alta dos preços. Ela dá o exemplo dos cigarros, que ficaram tão caros a ponto de serem vendidos por centímetro. “Todo o mundo está parando de fumar.”
Umm Abdo tem conseguido sobreviver graças à ajuda de amigos e conhecidos que a abrigam. Acaba, por isso, mudando de casa de tempos em tempos. “Todo mundo é uma grande família em Gaza.”
É difícil, porém, passar o tempo. Quase não há eletricidade ou sinal de telefone. Ela vive longos períodos de apagão informativo e de isolamento. “Procuro ficar feliz, mesmo quando estou triste. Vou caminhar na praia, ando pelas ruas, vou de uma cidade para outra, vou e volto.”
É evidente, pelo modo com que fala, que está no seu limite, como tantos outros palestinos. Conta que, neste ano de guerra, só conseguiu ver seus filhos uma vez. Durante o encontro, eles choraram, dizendo que tinham fome. “Não consigo ajudá-los, não consigo me ajudar, não consigo ajudar meus vizinhos. Estamos cansados.”
Aquela esperança que tinha no começo da guerra se esvaiu. Chegou a ter certeza de que os bombardeios iriam acabar depois do período sagrado do Ramadã, celebrado neste ano em março e abril. Não aconteceu. Depois, acreditou que a morte do líder palestino Ismail Haniyeh, em 31 de julho, fosse encerrar o conflito com Israel. Isso tampouco se concretizou. “Tudo o que eu quero, agora, é voltar para casa. Mas já não sei se um dia vou ter uma casa.”